Uma vez vi uma youtuber defender que os fanboys de Carl Sagan formam um tipo de seita naturalista: suas teses não apresentam uma metafísica espiritualista, mas sim uma metafísica naturalista — dormente na maioria das vezes. Ou seja, os “saganistas” seriam como sacerdotes inconscientes de uma religião, defendendo uma Revelação sem nem saberem disso. Eu concordo um pouco com isso.
Sabine Hossenfelder, física teórica de renome e autora de voz única na divulgação científica, oferece em A Ciência Tem Todas as Respostas? (Ed. Contexto, 2023) uma reflexão sobre o que a ciência é capaz de nos dizer — e, mais importante, o que ela não pode explicar (por uma limitação da natureza do conhecimento, não por conta de obstáculos tecnológicos passageiros, o que enfraquece bastante essa visão da ciência como a face epistêmica de um naturalismo religioso).
Movendo-se entre as fronteiras da física e os dilemas filosóficos, Hossenfelder desfia questões universais com a precisão de uma cientista e a curiosidade de uma pensadora. O livro é, simultaneamente, um manual de humildade científica e um convite à admiração pelo cosmos, com reflexões provocativas sobre os equívocos e limites da interpretação humana.
Uma Abordagem Radicalmente Honesta
Um dos objetivos do livro, como o título denuncia, é revelar as limitações mais diversas do conhecimento científico. E desde o início da obra Hossenfelder deixa isso claro. O título, A Ciência Tem Todas as Respostas?, não é apenas uma provocação; é um lembrete da finitude do conhecimento científico. Com capítulos que abordam desde a origem do universo até a natureza da consciência, ela não promete verdades absolutas, mas uma jornada honesta pelos confins do entendimento científico.
Seu estilo é direto, mas não desprovido de nuances. A autora equilibra explicações rigorosas com uma linguagem acessível, que desafia tanto o público leigo quanto os especialistas. Ao longo do livro, o leitor é constantemente lembrado de que a ciência é um processo, não um destino — uma ferramenta em evolução, e não uma solução definitiva para os mistérios do cosmos.
A Mecânica Quântica e a Traição da Linguagem
Uma das formas de limite do conhecimento científico é a correspondência entre a linguagem verbal e a matemática. Desde Galileu Galilei sabemos que a matemática pode ser uma linguagem mais adequada para falar sobre elementos da realidade que são indizíveis de forma verbal (uma marola que chega até nós causada lá atrás pela escola pitagórica; quem não se lembra da máxima "tudo são números?"). E nenhum capítulo do livro exemplifica melhor o desafio de traduzir ciência em palavras do que o dedicado à mecânica quântica. Hossenfelder explora como a matemática é a única linguagem verdadeiramente precisa para descrever essa área da física, enquanto as tentativas de expressá-la em termos cotidianos frequentemente levam a mal-entendidos.
Por exemplo, ela critica a metáfora de que uma partícula em superposição está "indo em ambas as direções ao mesmo tempo". Essa descrição, embora útil para iniciantes, distorce o significado real do fenômeno: uma soma de estados quânticos que só pode ser plenamente entendida através de suas representações matemáticas. O que Hossenfelder parece dizer é que essa soma pode ser muito bem até um tecnicismo matemático, não literalmente uma soma no sentido de dois eventos contraditórios ocorrendo ao mesmo tempo.
Termos como "colapso da função de onda" e "observador" são outro exemplo de como a mecânica quântica é frequentemente envolta em uma aura de mistério e misticismo. Para a física, essa abordagem não apenas falha em comunicar a ciência, mas perpetua mitos que obscurecem sua verdadeira elegância matemática.
A insistência em traduzir conceitos quânticos para analogias familiares muitas vezes esconde sua verdadeira natureza. "A mecânica quântica é bela precisamente porque desafia nossa intuição", escreve ela. "Tentamos domá-la com palavras, mas sua essência permanece no reino dos números."
Metáforas Úteis, Mas Perigosas
Apesar das críticas, Hossenfelder reconhece que metáforas e analogias têm seu lugar na comunicação científica. Elas tornam conceitos abstratos mais acessíveis e podem inspirar curiosidade em um público amplo. No entanto, ela é enfática ao apontar os perigos dessas ferramentas: "Metáforas nunca capturam completamente a sutileza da mecânica quântica. Elas são atalhos que, muitas vezes, levam a equívocos."
Expressões como "estranho" ou "bizarro" — palavras que a mídia e gurus quânticos adoram — usadas para descrever fenômenos quânticos exemplificam essa armadilha. Embora sejam comuns na divulgação científica, elas reforçam a ideia de que a mecânica quântica é inacessível e incompreensível, quando na verdade ela é perfeitamente lógica — dentro de seus próprios parâmetros matemáticos.
O Universo Pode Pensar?
Ao longo do livro, Hossenfelder dá exemplos de questões que cientistas abordam como se fossem científicas, mas que não são. Não é que não sabemos nada ainda a respeito, é que talvez alguns desses dilemas estejam para sempre opacos à nossa compreensão.
Uma dessas questões é se o universo pode pensar. A resposta, como era de se esperar, não é simples. Ela começa desconstruindo a premissa: para pensar, é necessário um sistema físico capaz de processar informações. O universo, embora interligado, não possui um mecanismo centralizado que possa ser comparado a um cérebro.
Além disso, a ideia de que o universo pensa pode não fazer sentido físico. A base material do pensamento é o cérebro, que funciona através da troca de impulsos elétricos entre neurônios — OK, sei que tem todo um debate entre cognição corporificada e cognitivismo aí, mas não importa. Essa troca de informação que nos permite pensar acontece em velocidades mais baixas que a da luz. É por isso que é plenamente possível pisar de mal jeito numa pedra e assistir à dor aparecendo no interior da consciência quase em câmera lenta. Não tem como nada parecido com isso acontecer entre galáxias trocando informação — o que seria análogo aos neurônios trocando impulsos elétricos. Galáxias estão anos-luz de distância umas das outras. Mesmo que aglomerados de galáxias formassem um cérebro gigante, a comunicação entre as galáxias seria lentíssima. Demoraria uns 1000 anos para, digamos, esse grande cérebro universal processar uma sensação de dor.
Ainda assim, a ideia de um cosmos consciente persiste, muitas vezes alimentada por interpretações equivocadas de conceitos científicos. É o velho desejo humano por significado mais do que qualquer realidade física sobre o universo. "Nós projetamos nossos anseios no cosmos", escreve ela, "mas o universo é indiferente às nossas perguntas."
Essa conclusão não é uma rejeição ao mistério do cosmos. Pelo contrário, é um convite a apreciá-lo como ele é: um sistema vasto e complexo, regido por leis que estamos apenas começando a compreender.
Bem-vindo ao Deserto do Real - Vivemos na Matrix?
A primeira vez que ouvi seriamente esse argumento foi num livro sobre Matrix, chamado “A Pílula Vermelha” (Publifolha, 2003). Trata-se de uma coletânea de artigos sobre temas abordados pelo filme. Um dos artigos é escrito por Nick Bostrom, um filósofo da tecnologia. Em suma, ele diz que se não estamos vivendo numa simulação, nós criaremos uma e pessoas lá dentro se perguntarão a mesma coisa.
Sabine Hossenfelder critica a hipótese da simulação, popularizada por filósofos como Nick Bostrom, argumentando que ela carece de rigor científico e se baseia em premissas especulativas que ignoram as complexidades das leis da física. Embora reconheça que o universo pode ser interpretado como uma computação das leis naturais, ela rejeita a ideia de que uma realidade superior controlada por uma entidade onisciente esteja em operação, classificando-a como um desdobramento disfarçado com origem em crenças religiosas. Ela destaca que a física moderna, especialmente a mecânica quântica e a relatividade geral, apresenta desafios que tornam inviável a simulação exata das leis naturais por algoritmos computacionais. Além disso, ela questiona a viabilidade de armazenar informações suficientes para simular bilhões de consciências e sustentar uma realidade coerente. Para a autora, a hipótese da simulação não apenas desconsidera as limitações práticas da ciência, mas também desvia o foco de questões mais relevantes e fundamentadas na física contemporânea.
Ciência e Pseudociência: Um Alerta Necessário
Hossenfelder reserva algumas de suas críticas mais contundentes para a deturpação da ciência em contextos pseudocientíficos. Ela aponta como termos como "quântico" são frequentemente usados para justificar ideias sem base, desde terapias alternativas até teorias conspiratórias.
Para ela, esse problema é sintomático de uma falha mais ampla na comunicação científica. Quando conceitos complexos são simplificados de forma irresponsável, eles perdem seu rigor e abrem espaço para interpretações místicas. "A ciência não é mística", enfatiza. "É um esforço humano, com falhas e limitações, mas profundamente valioso em sua busca pela verdade."
Os Limites da Ciência: Uma Lição de Humildade
Um dos temas centrais do livro é a ideia de que a ciência, apesar de seu alcance, tem limites. Hossenfelder aborda questões que podem nunca ser resolvidas empiricamente, como a origem do universo ou a essência da consciência. Para ela, reconhecer esses limites não é um sinal de fraqueza, mas de maturidade intelectual.
"O fato de que não temos todas as respostas não diminui a ciência", argumenta. Pelo contrário, ela sugere que essa humildade torna a ciência mais autêntica e relevante.
A Matemática Como a Linguagem do Universo
Para Hossenfelder, a verdadeira beleza da ciência está na matemática. Ela descreve as equações e estruturas matemáticas como uma linguagem que transcende limitações humanas, oferecendo uma visão do universo que vai além do que palavras podem capturar.
A insistência em traduzir conceitos matemáticos para linguagem cotidiana, ela argumenta, frequentemente obscurece essa beleza. "Quando aceitamos a matemática como nossa guia, o universo revela uma clareza que as palavras nunca poderiam oferecer."
O Significado Humano na Física
Embora profundamente científica, a obra de Hossenfelder é permeada por reflexões sobre o significado humano. Ela não apenas discute os limites do conhecimento, mas também o que esses limites dizem sobre nós como espécie.
Ao longo do livro, ela enfatiza que a ciência é uma construção humana, com todas as suas falhas e maravilhas. Essa perspectiva não a torna menos científica; pelo contrário, adiciona uma camada de profundidade ao seu trabalho.
Conclusão: Um Convite à Reflexão
A Ciência Tem Todas as Respostas? é mais do que um livro de divulgação científica. É uma exploração corajosa dos confins do conhecimento e das questões que definem nossa existência. Hossenfelder combina rigor científico com uma prosa instigante, oferecendo uma obra que desafia e inspira em igual medida.
Com capítulos provocativos e uma honestidade desarmante, o livro é um lembrete de que as perguntas sem resposta são tão importantes quanto as respostas que já temos. Em um mundo repleto de certezas, o livro nos convida a abraçar o desconhecido — e a encontrar beleza nos limites da ciência.
Com subtítulos estilosos e uma escrita que equilibra precisão e lirismo, o livro celebra sua capacidade de transformar ciência em uma reflexão profunda sobre o universo e nosso lugar nele.
Sabine Hossenfelder é um hábito adquirido e viciante!
Sabine Hossenfelder é um hábito adquirido e viciante!