Richard Dawkins: por que o sexo biológico importa
Zoólogo e autor britânico diz ter sido censurado no Facebook por opiniões como a deste artigo
Nota do tradutor: em 10 de agosto de 2024, Richard Dawkins acusou o Facebook de bani-lo por blasfemar contra o identitarismo de gênero aplicado aos esportes, com menção específica do caso das pugilistas com diferenças de desenvolvimento sexual Imane Khelif e Lin Yu-ting (leia minha cobertura do assunto). Funcionários da empresa-mãe do Facebook, Meta, negaram e disseram que a conta de Dawkins saiu temporariamente do ar por causa de um incidente de segurança.
Mas surpreenderia a alguém se Dawkins tivesse razão? Não a mim, que fui banido repetidamente por criticar o identitarismo e até por chamar a mim mesmo com a palavra proibida “viado” na intenção de ter mais um termo em português reapropriado (por que só pode ser feito com “gay” e “queer”, palavras estrangeiras?). Em homenagem ao Dawkins, publico a tradução abaixo. Concordo com quase tudo, só faço a ressalva de que não há expectativa de que pessoas com a síndrome de insensibilidade completa a androgênio, que são XY, mas nascem com vagina e não têm puberdade masculinizante, sejam diferentes das mulheres em questões como esporte. Em quase todos os sentidos relevantes (exceto a reprodução), essas pessoas são mulheres, apesar de terem cromossomo Y.
Alguns argumentam que a vivência e as escolhas pessoais têm mais peso do que a biologia – mas estão errados.
Por Richard Dawkins
Em 2011, fui editor convidado da edição dupla de Natal da revista New Statesman. Gostei da experiência, que envolveu uma visita a Christopher Hitchens no Texas para conduzir o que acabou sendo sua última entrevista. Não perguntei a ele “o que é uma mulher?” Em 2011, não passaria pela cabeça de ninguém fazer uma pergunta tão tola. Hoje, essa pergunta é lançada a políticos constrangidos e perplexos, em tons que são desafiadores ao ponto da beligerância. Não é difícil imaginar a resposta de Hitchens se ele pudesse ser questionado sobre isso hoje.
Minha principal contribuição para aquela edição de Natal foi um longo ensaio sobre “A tirania da mente descontínua”. Em todo lugar que você olha, continuidades suaves são arbitrariamente divididas em categorias discretas. Cientistas sociais contam quantas pessoas estão abaixo da “linha de pobreza”, como se realmente houvesse uma fronteira, em vez de um contínuo medido em renda real. Defensores das posições “pró-vida” e “pró-escolha” se preocupam com o momento na embriologia em que o status de pessoa começa, em vez de reconhecer a realidade, que é uma ascensão suave desde o estágio de zigoto. Um americano pode ser chamado de “negro”, mesmo que sete oitavos de seus ancestrais sejam brancos.
Antropólogos discutem se um fóssil é um Homo erectus tardio ou de um Homo sapiens precoce. Mas é da própria natureza da evolução que deve haver uma sequência contínua de intermediários. Você pode votar no seu 18º aniversário, mas não antes, como se o toque da meia-noite sinalizasse um salto quântico em sua competência política. As universidades atribuem notas como A, B+, B e C, mesmo que todos saibam que a diferença entre uma nota alta e uma nota baixa dentro do mesmo conceito é muito maior do que entre uma nota baixa de um conceito e uma alta do conceito inferior. Existem professores de Oxford que acreditam em algo que chamam de “a mente alfa”, uma “forma ideal” platônica, como um triângulo perfeito pairando, puro, acima do caos da realidade.
Se o editor me desafiasse a encontrar exemplos em que a mente descontínua realmente acerta, eu teria dificuldade. Alto vs. baixo, gordo vs. magro, forte vs. fraco, rápido vs. lento, velho vs. jovem, bêbado vs. sóbrio, seguro vs. inseguro, até mesmo culpado vs. inocente: esses são os extremos de distribuições contínuas, se não sempre em forma de sino. Como biólogo, o único binário fortemente descontínuo que consigo pensar se tornou estranhamente controverso. É o sexo: masculino vs. feminino. Você pode ser cancelado, difamado, até mesmo fisicamente ameaçado se ousar sugerir que um ser humano adulto deve ser homem ou mulher. Mas é verdade; pela primeira vez, a mente descontínua está certa. E a tirania vem do outro lado, como aquela corajosa heroína J. K. Rowling poderia testemunhar.
Anisogamia
O sexo é um verdadeiro binário. Tudo começou com a evolução da anisogamia – reprodução sexual onde os gametas são de dois tamanhos descontínuos: macrogametas ou óvulos, e microgametas ou espermatozoides. A diferença é enorme. Pode-se acomodar 15.000 espermatozoides em um único óvulo humano. Quando dois indivíduos investem juntos em um bebê, e um investe 15.000 vezes mais que o outro, pode-se dizer que ela (veja como os pronomes surgem sem aviso) fez um compromisso maior com a relação.
A anisogamia é a regra na maioria dos animais, mas nem sempre foi assim. Alguns animais e plantas primitivas ainda são “isogâmicos”: em vez de macrogametas e microgametas, eles têm (iso)gametas de tamanho médio. Ambos os parceiros contribuem igualmente para o investimento conjunto. Para fazer um zigoto viável, você precisa da soma de dois isogametas, cada um valendo metade de um zigoto. A mesma soma necessária pode ser alcançada se um parceiro contribuir com um isogameta ligeiramente menor, mas isso funcionará apenas se o outro parceiro contribuir com um isogameta maior para compensar o prejuízo. Pode-se dizer que o investidor minoritário está explorando o parceiro que se compromete com o gameta maior.
Você talvez consiga ver onde esse argumento está indo, e ele foi de fato modelado matematicamente. A isogamia é instável. Sob condições plausíveis, obtemos uma evolução desenfreada em direção a alguns indivíduos produzindo gametas cada vez menores, enquanto outros vão na outra direção, produzindo gametas cada vez maiores. No final da evolução desenfreada, agora temos microgametas que buscam ativamente macrogametas, e os primeiros evoluem caudas ondulantes para impulsionar sua busca. Os macrogametas são procurados e não precisam sair em busca de microgametas. Como os microgametas são tão pequenos, os indivíduos que os produzem podem se dar ao luxo de produzir muitos. Os macrogametas têm que ser poucos porque, como os economistas adoram dizer, não existe almoço grátis. O desequilíbrio também significa que os produtores de microgametas (“ele/dele”) podem se acasalar com muitas produtoras de macrogametas (“ela/dela”), abandonando cada uma por sua vez. Ou eles podem reservar para si um harém delas. Não haveria sentido em uma ela reunir um harém deles ao seu redor: ela não tem gametas suficientes para se beneficiar.
O binário anisogâmico fornece a forma mais antiga e profunda de distinguir os sexos. Existem outras formas, mas elas são menos universalmente aplicáveis. Em mamíferos e aves, você pode fazer isso com cromossomos. Cada célula do corpo de um humano normal tem 46 cromossomos, 23 de cada progenitor. Entre esses cromossomos estão dois cromossomos sexuais, chamados X ou Y, um de cada progenitor. Fêmeas têm dois X, machos um X e um Y. Qualquer mamífero com um cromossomo Y se desenvolverá como macho. Quando um macho produz espermatozoides (que são “haploides”, ou seja, têm apenas um conjunto de 23 cromossomos), 50% desses gametas são espermatozoides Y, destinados a gerar filhos machos, e 50% são espermatozoides X, que fazem filhas. Aves e borboletas têm um sistema semelhante, mas ao contrário. São as fêmeas que têm XY, exceto que são chamados de ZW. Em moscas, o equivalente do cromossomo Y é um zero. Se uma mosca tem dois cromossomos sexuais, ela é fêmea. Uma mosca com apenas um cromossomo sexual é macho. Muitos répteis usam a temperatura em vez de cromossomos. Tartarugas incubadas abaixo de 27,7°C se desenvolvem como machos, ovos mais quentes como fêmeas.
Os peixes-palhaço determinam o sexo não pela temperatura, mas pela dominância. Todos, exceto um dos membros de um grupo, são machos, e como muitos animais, eles se organizam em uma hierarquia de dominância. Há apenas uma fêmea no grupo. Quando ela morre, o macho dominante muda de sexo e se torna a fêmea. O que isso significa em termos de gametas é que seus testículos encolhem e ovários crescem em seu lugar. O princípio do sexo binário no nível de micro e macrogametas é mantido. Hermafroditas como minhocas e caramujos terrestres têm testículos e ovários no mesmo corpo ao mesmo tempo. Os caracóis são capazes de trocar espermatozoides nos dois sentidos, tendo primeiro disparado violentamente arpões uns nos outros. O peixe-pescador abissal também tem órgãos masculinos e femininos no mesmo corpo. Mas isso acontece de uma maneira curiosa. Os machos são anões diminutos; eles localizam uma fêmea, cravam suas mandíbulas na parede do corpo dela e, em seguida, tornam-se parte dela como nada mais que um pequeno apêndice testicular.
Em mamíferos, incluindo humanos, há ocasionalmente intersexos. Bebês podem nascer com genitália ambígua. Esses casos são raros. A estimativa mais alta, 1,7% da população, vem da bióloga americana Anne Fausto-Sterling. Mas ela inflacionou sua estimativa enormemente ao incluir as síndromes de Klinefelter e Turner, nenhuma das quais são verdadeiros intersexos. Indivíduos com Klinefelter têm um cromossomo X extra (XXY), mas seu cromossomo Y garante que eles sejam obviamente machos, produzindo microgametas, embora a partir de testículos reduzidos. Indivíduos com Turner são fêmeas sem ambiguidade, sem cromossomo Y e com apenas um cromossomo X (funcional). Têm uma vagina e útero, e seus ovários, se existirem, não são funcionais. Obviamente, indivíduos com Klinefelter (sempre machos) e Turner (sempre fêmeas) devem ser excluídos das contagens de intersexos, caso em que a estimativa de Fausto-Sterling encolhe de 1,7% para menos de 0,02%. Intersexos genuínos são raros demais para desafiar a afirmação de que o sexo é binário. Existem dois sexos em mamíferos, e ponto final.
Mas e quanto ao gênero? O que é gênero, e quantos gêneros existem? Agora é moda usar “gênero” para o que poderíamos chamar de sexo fictício: o “gênero” de uma pessoa é o sexo ao qual ela sente que pertence, em oposição ao seu sexo biológico. Nesse sentido, “gêneros” proliferaram de forma desenfreada. Na última vez que chequei, havia 83. Mas isso foi ontem. O que “gênero” realmente significa?
O sexo fictício foi tomado da linguística
A linguagem evolui, e muitas palavras mudam de significado em uma escala de tempo de séculos. Mas “gênero” foi acelerado. É principalmente um termo técnico linguístico. Linguistas classificam palavras de uma determinada língua de acordo com coisas como os sufixos nos adjetivos que as qualificam ou seus pronomes e artigos concordantes. Todos os substantivos franceses seguem ou o le ou o la. Eles tomam pronomes diferentes, e os adjetivos concordam com eles em gênero (le chapeau blanc, mas la robe blanche). Normalmente (há exceções, como la souris para um camundongo de qualquer sexo) os machos são le e as fêmeas são la. Isso torna conveniente usar o rótulo “masculino” para as palavras le e “feminino” para as palavras la. Mesa é uma palavra feminina, mas os falantes de francês não pensam em uma mesa como um móvel literalmente fêmea. É apenas uma palavra la. O lituano também tem dois gêneros, mas os pronomes possessivos concordam com o gênero do possuidor (como em inglês), enquanto em francês eles concordam com o gênero do objeto possuído. O estoniano tem apenas um gênero, o que suponho que signifique nenhum gênero – a própria ideia de gênero é sem sentido. Algumas línguas bantas, como o nyanja, a língua dominante de minha terra natal, Malawi, têm muitos. O livro de Steven Pinker “O Instinto da Linguagem” cita o kivunjo por ter 16 gêneros. Estes não são 16 identidades sexuais, são 16 famílias de substantivos classificados de acordo com o modo como os verbos concordam com eles.
Em inglês, como em francês, gênero e sexo se alinham. Todos os animais fêmeas são de gênero feminino, todos os machos são masculinos, todas as coisas inanimadas são neutras (com exceções caprichosas, como navios e nações, que podem ser femininas). Por causa da correlação perfeita entre sexo e gênero na gramática inglesa, foi natural para os falantes de inglês adotar “gênero” como um eufemismo polido para sexo: “Sam é de gênero feminino” soava mais educado do que “ Sam é do sexo feminino”.
Mas essa convenção recentemente deu lugar a outra. A moda de fêmeas se “identificarem como” homens e de machos se “identificarem como” mulheres impôs uma nova convenção assertiva. Seus genes e cromossomos podem determinar seu sexo, mas seu gênero é qualquer coisa que mais lhes agradar: “Fui designado como masculino ao nascer, mas me identifico como mulher”. Finalmente, a roda dá uma volta completa, e a autoidentificação foi tão longe a ponto de usurpar até mesmo o “sexo”. Uma “mulher” é definida como qualquer pessoa que escolha se chamar de mulher, e não importa se ela tem um pênis e um peito peludo. E claro, isso lhe dá direito de entrar nos vestiários femininos e competições atléticas. Por que ela não deveria? Afinal, ela é uma mulher, não é? Negue isso e você é um fanático transfóbico.
Os sumos sacerdotes do pós-modernismo ensinam que a vivência e os sentimentos têm mais peso do que a ciência (que é apenas a mitologia de uma tribo de colonizadores opressores). Teólogos católicos (mas não os protestantes) declaram que o vinho consagrado realmente se torna o sangue de Cristo. A solução de álcool diluído que permanece no cálice é apenas um “acidente” aristotélico. A “substância inteira” (daí a palavra “transubstanciação”) é sangue divino na verdadeira realidade. Na nova religião da transubstanciação transexual, o “pênis feminino” é apenas um “acidente”, uma mera construção social. Na “substância inteira”, ela é uma mulher. Uma mulher transubstanciada.
Sarcasmo à parte, a disforia de gênero é algo real. Aqueles que sinceramente se sentem nascidos no corpo errado merecem compaixão e respeito. Fiquei convencido disso quando li o comovente relato de Jan Morris, “Conundrum” (1974). Com o que ela chamou de “verdadeiro transexual”, ela se distanciou dos “pobres marginalizados intersexos, os homossexuais confusos, os travestis, os exibicionistas psicóticos, que caem nesse submundo como palhaços pintados, lamentáveis para os outros e muitas vezes horríveis para si mesmos”. Em “confusos”, ela poderia ter acrescentado as infelizes crianças de hoje que, seguindo uma moda de playground, se encontram ansiosamente afirmadas por professores “solidários” e médicos antenadinhos com seus bisturis e hormônios. Veja “Dano Irreversível: a moda transgênero que seduz nossas filhas” (2020, trad. livre), de Abigail Shrier; “Garotas materialistas: por que a realidade importa para o feminismo” (2021, trad. livre), de Kathleen Stock; e “Trans: a ideologia de frente com a realidade” (2021, trad. livre), de Helen Joyce.
Muitos de nós conhecemos pessoas que optam por se identificar com o sexo oposto à sua realidade biológica. É educado e amigável chamá-las pelo nome e pronomes que preferem. Elas têm direito a esse respeito e simpatia. Seus apoiadores militantes e barulhentos não têm o direito de tomar nossas palavras e impor redefinições idiossincráticas ao resto de nós. Você tem o direito ao seu léxico privado, mas não tem o direito de insistir que mudemos nossa linguagem para se adequar ao seu capricho. E você absolutamente não tem o direito de intimidar e ameaçar aqueles que seguem o uso comum e a realidade biológica ao usar “mulher” como uma descrição consagrado para metade da população. Uma mulher é uma fêmea humana adulta, livre de cromossomo Y.
Publicado originalmente na revista The New Statesman, 26 de julho de 2023.
N. do T.: A New Statesman também publicou na mesma data um contraponto da Jacqueline Rose: “O binário de gênero é falso: devemos questionar uma mentalidade que cruelmente exclui grupos inteiros de pessoas”. Você encontra o texto aqui.