Fingimento Epistêmico: Quando a maioria não se interessa pela verdade
Quando o mérito cognitivo de nossas crenças deixa de importar, não temos mais crenças e sim meras atitudes não-cognitivas. E quando o discurso factual é apenas uma fachada para essas atitudes não-cognitivas, o que resta é um comportamento animales
Foucault manteve que a pretensão a qualquer verdade é inerentemente coercitiva. O que não lhe passou pela cabeça é que a maioria da humanidade não tem quaisquer pretensões à verdade. O discurso da verdade requer a liberdade de pensar e a responsabilidade por suas escolhas epistêmicas. Isso é muito difícil e praticamente ninguém quer isso. Ao invés, o que há é uma prática social de fingimento epistêmico na qual a aparência de crenças sinaliza a conformidade a normas. As pessoas não desejam a verdade, mas fingem que a desejam para sinalizar que são como os outros. Para a maioria, o conteúdo das ideias e o seu mérito cognitivo não interessa. O que importa é agradar um grupo e obter capital social. A regra do jogo é a imitação e manter as aparências de maneira acognitiva. Ninguém acredita em nada. A verdade que se dane.
Por isso, não são os discursos da verdade que são coercitivos, mas sim as dinâmicas de grupo que fingem interesse epistêmico mesmo sendo inteiramente alheias às pretensões de verdade. Isso é evidenciado na concepção do aprendizado como a modorrenta memorização de conteúdos. Essa prática coercitiva embrutece o espírito e o submete, mas isso só ocorre porque a escola é uma instituição disciplinar que visa à conformidade social. É uma prisão em que os detentos se submetem para obter papéis que sinalizam conformidade social. Os exames, por exemplo, não só não visam a fomentar a produção de conhecimento novo, como instilam nos alunos precisamente os valores opostos.
A preocupação em ser aceito por um grupo é intrinsicamente coercitiva, pois só pode fazer parte do grupo quem aceita as suas normas. Os demais serão excluídos. Toda prática de dominação, normalização e marginalização é originada dessa vocação social. Ela é direta ou indiretamente responsável pelo uso disseminado e sistemático da coerção injustificada. Não são as pretensões cognitivas que reprimem, mas sim a vontade de ser bem visto pelo grupo. Não são os ideais normativos que movem o moinho da história, mas o desejo pelo status e pelo reconhecimento dos pares. O filósofo que se preocupa com a verdade projeta de modo inocente os seus interesses no restante da população, mas esses interesses são encarados como frescura até mesmo na academia.
É claro que um mundo sem grupos é um ideal inalcançável e despropositado. Afinal de contas, vivemos em sociedade, nascemos fazendo parte de grupos que não escolhemos (como a nossa família e o nosso país), e várias de nossas crenças e preferências podem ser classificadas como sendo características dos membros de um dado grupo. Além disso, é inegável que uma análise minimamente refinada do fenômeno reconheceria que alguns grupos são melhores do que outros. Tudo isso é verdade, mas nada disso refuta o meu ponto. Há uma diferença muito grande entre fazer parte de um grupo para se sentir incluído e fazê-lo em função do seu mérito intrínseco. A vontade de grupo se manifesta no primeiro caso, pois qualquer grupo serve desde que sejamos incluídos socialmente.
Isso explica o equívoco do multiculturalismo, que propõe a relativização da verdade para diminuir a intolerância. Já somos relativistas, pois assumimos que a verdade é o que diz o nosso grupo. E é exatamente essa relativização que alimenta a intolerância, pois toda incompreensão vem da incompatibilidade entre grupos com normas diferentes. As tensões são inevitáveis, pois o que é normal no meu grupo não é normal no seu. Esse também é o motivo pelo qual a crença comunitarista de que só podemos nos realizar em uma comunidade é hedionda. Ela implica que só podemos ser felizes quando nos sujeitamos às práticas de condicionamento e valores impostos de fora. O que se segue é que tudo o que importa é a inclusão e as práticas de normalização. O indivíduo torna-se irrelevante, um mero acessório para agradar o grupo. Sua dignidade epistêmica lhe foi roubada e transferida para o grupo, que opera como um constructo fantasmagórico com vida própria.
No anseio pela aceitação social, pensamos que podemos dizer coisas que não acreditamos por conveniência sem que isso afete as nossas próprias crenças e valores. A nossa expectativa é de que elas poderão ser acessadas em qualquer momento futuro por introspecção. Ledo engano. A prática contínua de repetir o que os outros pensam leva à insensibilidade epistêmica e ao autoengano, pois é mais fácil mentir quando esquecemos os nossos valores e não carregamos o fardo do compromisso inflexível com a verdade. Essa condição de autoengano perene é fundamental para quem deseja a adesão incondicional a grupos. Não basta apenas mentir para agradar os outros, é preciso também aperfeiçoar a arte de mentir para si mesmo e fazer vista grossa. Os fatos mais óbvios podem ser prontamente ignorados quando a realidade fere os nossos interesses sociais.
Essa realidade de hipocrisia nos torna cínicos, oportunistas e massacra os ideais. Ela nos faz perder contato com nós mesmos e com a realidade à nossa volta. Ela nos aliena de nossos próprios valores e nos confina no mundo das aparências. Ela gera incompreensão ideológica, pois não sabemos mais quem realmente acredita em que ou por qual motivo. Não sabemos mais nem mesmo em que acreditamos pessoalmente, pois nos esquecemos do que é ter crenças sinceras. Uma vez que o sistema de crenças é visto apenas como um meio de adesão às dinâmicas de grupo, a sua vocação cognitiva é tolhida. Com o desuso, ele se enferruja e é carcomido pela inércia até o ponto em que é arruinado em definitivo.
Quando o mérito cognitivo de nossas crenças deixa de importar, não temos mais crenças e sim meras atitudes não-cognitivas. E quando o discurso factual é apenas uma fachada para essas atitudes não-cognitivas, o que resta é um comportamento animalesco, movido por instinto e dinâmicas de matilha. Perdemos a capacidade de agir racionalmente. Como essas atitudes são inconfessadas ou inconscientes, perdemos também os valores da transparência e da sinceridade. A única coisa que não perdemos é o desejo de fazer parte de um grupo. Aristóteles estava enganado ao afirmar que desejamos naturalmente o conhecer. A única coisa que desejamos naturalmente é a inclusão social em um grupo. Ela é o bem último que é desejado por si só e guia todas as ações. O resto é coleção de selos.
É esse desejo de inclusão que motiva projetos de vida ocos, nos quais toda a felicidade pessoal é depositada nos caprichos do julgamento externo e na arte da interpretação de papéis sociais estereotipados. É o tédio da repetição de clichês, da conformidade aos processos embrutecedores de condicionamento, da ausência de vida interior. É desprezar os bens mais elevados proporcionados pela autenticidade e pela sofisticação da mente, e optar por viver em um deserto intelectual de ambições mesquinhas e caricatas. É aceitar como mais importantes os valores inferiores, acidentais e pelas razões erradas. É usar como o princípio valorativo fundamental o critério grosseiro da contagem de cabeças, e ainda por cima fazer a conta de maneira arbitrária, sem qualquer rigor científico.
A saída para esse quadro de alienação total de nós mesmos e dos outros não é o relativismo, mas o interesse genuíno pela verdade das coisas e uma atitude de indiferença diante da ameaça de marginalização. É a vontade de verdade que finca os nossos pés na realidade, possibilita a compreensão de nós mesmos e perfura os valores de grupo que não estão de acordo com a realidade. É somente quando paramos de nos preocupar com o que os outros pensam que podemos tratá-los como fins em si ao invés de meios de manipulação social. É a falta de interesse no resultado da interação social que permite a ausência de conflito de interesses e a compreensão do que está sendo dito e por qual razão.
Só respeitamos os sistemas de crenças alheios quando estamos dispostos a avaliá-los com rigor. Inversamente, é a atitude lisonjeira que é desrespeitosa, pois implica tratar outras pessoas como meros artefatos do jogo social. Uma atitude crítica pode causar antipatia e retaliação, mas é profundamente honrada e humana, pois apela para a inteligência que temos em comum. Pelo contrário, é a pretensão da ignorância alheia e a subsequente tentativa de manipulação social que viola todas as normas e bons costumes de civilidade epistêmica.
Uma atitude mais crítica e, portanto, mais respeitosa em relação aos outros, requer uma atitude mais crítica em relação aos próprios valores e crenças. Nossas crenças não devem ser tratadas como meras oferendas e sacrifícios no altar da aceitação social. O mínimo que se espera de uma vida digna é amor-próprio epistêmico e respeito pelos valores e convicções que vêm de dentro. Quando a bússola epistêmica está sempre orientada pelo que os outros pensam, temos uma vida vazia, desalmada e sem sentido. É o paradoxo do sacrifício de si mesmo movido por fins egoístas. A busca por maior controle na aquisição cognitiva é um imperativo implícito na vocação epistêmica dos nossos sistemas de crença. Devemos essa autonomia de espírito a nós mesmos.
A tomada de responsabilidade pelas próprias crenças pode ser vista por alguns como um martírio pessoal, mas a alternativa tem também os seus riscos, pois aquilo é tido como norma fundamental em um grupo é anátema em outro. A sociedade é um campo minado ideológico de modos de vida incompatíveis entre si. Uma realidade de guetos cada vez mais idiossincráticos e segregados por suas pretensões de exclusividade e fetiches coercitivos. Não só não é possível agradar a todos os grupos simultaneamente, como a dedicação a um grupo implica na exclusão de outro. E, em alguma medida, nem mesmo a dedicação a um grupo garante a sua inclusão no mesmo. Mais vale ter dignidade epistêmica do que abdicar de si mesmo em troca de um benefício social que é incerto. Como lembra Ovídio: “Felizes são aqueles que ousam defender corajosamente o que amam”. E infelizes, podemos completar, são aqueles que não possuem a coragem de criar convicções próprias.
Isso implica que a sociologia de cadeira da autocensura que teme o julgamento externo é muitas vezes infundada. É provável que poucos terão tempo de se importar com o que fazemos e as nossas suposições empíricas sobre o que “todo mundo pensa” geralmente não possuem qualquer embasamento estatístico. Na melhor das hipóteses, elas refletirão apenas o que uma das muitas maiorias pensa num dado instante do tempo. O fato é que não saberemos sequer o que a maioria pensa em qualquer acepção relevante do termo. Quem ignora isso age como um doido, pois pauta as decisões mais importantes de sua vida em achismo pseudocientífico.
O fingimento de valores anda de mãos dadas com o descaso epistêmico autoinfligido. Se não sabemos o porquê das coisas e não podemos escolher os nossos valores, só nos resta copiá-los de outras pessoas. A ignorância avassaladora exige mecanismos substitutos de legitimação epistêmica para preencher o vazio deixado pela ausência de razões. Se não há mais meios individuais de asseverar o valor do que quer que seja, tudo depende daquilo que é aceito por terceiros em um dado instante do tempo. Um filtro social que emerge de modo caótico, sem planejamento ou coerência interna.
É a vontade de ser aceito por grupos que nos radicaliza e nos faz aceitar ideias malucas que jamais aceitaríamos quando pensamos com os nossos botões. Como lembra Nietzsche: “A loucura é uma exceção nos indivíduos, mas a regra nos grupos”. Charles MacKay observa de modo similar que “os homens enlouquecem em bando, enquanto só recuperam os sentidos lentamente, um a um”. A vontade de grupo cria conflitos insolúveis motivados por convenções tribais, assim transformando as pessoas em seres puramente instintivos, volúveis. Por outro lado, é o compromisso individual com a verdade que supera o provincianismo de grupo, impede que sejamos contaminados por narrativas de divisão e nos permite fazer parte de algo maior do que nós mesmos.
A farsa do fingimento epistêmico precisa ser um exercício conjunto, ensaiado e coreografado coletivamente, pois uma única voz discordante pode expor todo o processo ao ridículo. Isso cria uma dinâmica de bullying cultural, em que os mais autênticos enfrentam resistências por dizerem coisas óbvias e sensatas. O sentimento de exclusão dos sensatos amplia a sua sensibilidade epistêmica e senso crítico, aumentando ainda mais o mal-estar gerado por sua atitude inquisitiva. Essa dissidência também pode ser alvo de inveja epistêmica, pois cada tentativa de autodeterminação é ressentida por quem abdicou de sua liberdade para adotar um modo de vida que carece de fundamentos. Toda ação que você toma fora do grupo fortalece a autenticidade do indivíduo e enfraquece os processos de condicionamento.
A vontade de grupo é parasitária ingrata dos indivíduos que produzem conhecimento e cultura, pois desfruta desses benefícios sociais ao mesmo tempo em que despreza aqueles que os produzem. Por isso, ela acaba por funcionar indiretamente como uma máquina de triturar vocações cognitivas, incentivando massivamente a improdutividade cognitiva e cultural. Ela também nos rebaixa economicamente, pois a atitude acognitiva indiscriminada em relação às diferentes disciplinas resulta em amadorismo e prestações de serviços sofríveis e desatualizadas. Uma sociedade é tão boa quanto o profissional médio em cada área de especialidade. Quando a sociedade é composta por uma maioria acognitiva ficamos despreparados para enfrentar os problemas sociais complexos que são cruciais para a nossa sobrevivência.
A prática do fingimento epistêmico e o seu anseio de vontade de grupo leva naturalmente a uma cultura de exibicionismo em que crenças e valores são ostentadas em busca da autopromoção. Isso gera uma intensificação e deturpação do discurso epistêmico, que é condicionado por motivos egoístas. Somos impelidos a uma corrida armamentícia em que os mais honestos são desprezados precisamente por não exagerarem os seus compromissos ou contar vantagem o tempo todo. Isso cria uma realidade em que a vaidade e a duplicidade social de grupo são estimuladas, enquanto a honestidade individual é maltratada. O melhor parece pior por não agir de forma desonesta. O inegável é que a vida de aparências é indiferente à natureza da realidade e à melhor versão de nós mesmos. Ela é uma hipocrisia desumanizante.
A saída para esse exibicionismo corrupto é a autenticidade individual, que está mais preocupada em ter valores do que com a sua visibilidade. Qualquer um pode fingir valores que não possui ao realizar uma ação movida pelas intenções erradas. Em qualquer visão minimamente íntegra das coisas é o compromisso sincero com as ideias que importa e não a sua aparência. Há algo de nobre na privacidade sincera e algo de imoral no exibicionismo preocupado com a reputação e a fofoca alheia. Quem se preocupa em ser bem visto pela sociedade não é respeitável e honrado, mas corrupto e interesseiro. Quem é realmente íntegro não se preocupa com o que os outros pensam, pois tem interesse genuíno na natureza das coisas, valoriza o aperfeiçoamento epistêmico e ambiciona ter uma vida autêntica e plena de sentido.
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Imagem: Pintura de Clive Wilkins - The Masquerade Creatures. 2010.