Filósofo que dá nome a prêmio prestigioso era psicopata, líder de célula comunista, e convenceu 'camarada' de 19 anos a se matar
Imre Lakatos [1922-1974] é um dos mais importantes filósofos da ciência do século XX. Sua abordagem da metodologia científica foi muito influente, e a contribuição que ele fez à filosofia da matemática é, de acordo com Ian Hacking, “simplesmente definitiva: o assunto jamais será o mesmo novamente” (Hacking 2000, 28). Lakatos levou oito anos, depois de receber seu PhD em Cambridge, para ascender à prestigiosa cadeira de filosofia na London School of Economics [LSE] em 1969, depois da aposentadoria de Karl Popper. Atualmente, a maior honra da filosofia da ciência leva o seu nome: o Prêmio Lakatos. (...)
[Um] evento importante na vida de Lakatos (excluído de sua biografia na LSE), que lança uma sombra ainda mais negra sobre o seu caráter, tem a ver com seu papel no suicídio de uma jovem chamada Éva Izsák, em 1944. Apresentarei os fatos básicos desse caso com apoio em diversas fontes, incluindo uma transcrição de audiências conduzidas no Departamento Político da Polícia do Estado em Nagyvárad (o nome romeno da cidade é Oradea) em 18 e 19 de junho de 1945. Esse documento está apensado a um ensaio tocante escrito pela irmã de Izsák, Mária Zimán, no começo do qual ela diz algo chocante (que fará mais sentido em breve): “Éva foi a vítima de uma era cruel, a era do hitlerismo. Mas a execução dela superou até os métodos mais insidiosos de execução da época” (Zimán 1989).
Durante a II Guerra Mundial, Lakatos se filiou ao Partido Comunista e se tornou o líder oficioso de uma pequena célula secreta em Nagyvárad. Um dos membros da célula era uma mulher judia de 19 anos, Éva Izsák. Ela, como muitos outros membros, vivia na clandestinidade e tinha documentos falsos. Temia-se que ela fosse um risco de segurança em particular para o grupo todo – que era mais provável que ela fosse presa e que fosse forçada a revelar informações sobre os seus camaradas. Esse problema tinha de ser resolvido e não havia dúvidas sobre quem se encarregaria: Imre Lipsitz (sobrenome original de Lakatos), o líder indisputado da célula e também a autoridade em marxismo, questões políticas, questões de estratégia e basicamente tudo o mais. Ele não decepcionou, inventando uma ideia totalmente inesperada, ou o que um comentarista mais tarde chamou de “proposta insana” (Kadvany 2012, 277): A melhor saída seria que Éva Izsák cometesse suicídio.
A proposta foi apoiada por um argumento formulado pelo futuro professor da LSE em termos de dialética marxista que os outros membros achavam tão convincente que todos imediatamente votaram a favor – incluindo o próprio namorado de Éva! Naquela reunião fatídica, a namorada de Lakatos pediu para ficar com o casaco de inverno de Éva depois de sua morte, o que foi aprovado.
Depois que a pobre Éva soube da decisão, ela só perguntou se havia alguma outra saída. Como uma testemunha recontou mais tarde à polícia, Lakatos explicou que “não havia nenhuma outra solução e que o que nós provamos na teoria … devemos realizar também na prática, então ela tinha de fazer isso”. E ela fez. Primeiro, ela tinha de viajar a um lugar remoto onde o seu corpo não seria reconhecido por ninguém. Foi acompanhada por outro comunista de confiança, Nyuszi Levente, cujo dever era preparar as coisas e assegurar que não houvesse mudança de ideia no último minuto:
Nyuszi nos contou que, quando ele e Éva foram a Nagyerdő, procuraram por um lugar ermo aonde ninguém nunca ia. Ele tinha consigo a água e então Éva tomou o veneno quando começou a escurecer. Nyuszi disse a Éva que tudo terminaria em alguns instantes. Depois que Éva o tomou, Éva estava tão forte e corajosa que até perguntou a Nyuszi quando tudo acabaria, mas ela nem conseguiu terminar a frase, porque caiu, fazendo um barulho vibrante, e Nyuszi, supostamente, fechou a boca dela, que estava espumando.
Relato de Alfonz Weisz, um membro da célula comunista de Lakatos: interrogatório policial de 1945.
Quando Elie Wiesel leu sobre a morte de Éva Izsák, seu comentário foi: “Judeus matando judeus! No meio do Holocausto! Nunca ouvi nada parecido com isso!” (citado em Bandy 2009, 49).
O triste é que na realidade não havia razão nenhuma para Éva Izsák morrer. Antes de seu suicídio, sua irmã (também comunista) estava fazendo tudo o que podia para entrar em contato com ela e levá-la a um lugar seguro. No entanto, não conseguiu contactá-la porque toda a comunicação com Éva tinha de passar pelos líderes da célula (que até abriam a sua correspondência). Eles inexplicavelmente se recusaram a responder às cartas e perguntas da irmã. Quando uma boa amizade de Éva foi a Nagyvárad para buscá-la e levá-la a uma casa segura em outra cidade, essa pessoa foi informada que Éva já tinha saído, embora ela ainda estivesse lá, enquanto o grupo, sob a influência de seu rigoroso líder, estava estranhamente relutante em considerar qualquer alternativa à “solução” do suicídio.
Ademais, esse modo de lidar com camaradas que eram considerados um risco de segurança era simplesmente desconhecido na época. Imre Tóth, um filósofo da matemática que no fim da guerra se envolvera no mesmo tipo de atividade clandestina na Hungria que Lakatos, disse mais tarde:
[A pena de morte] por um nefasto suicídio como imposta por Imre Lakatos estava até neste tempo e em seu sistema referencial em flagrante contradição com todos os padrões táticos, políticos e morais do movimento clandestino. Era certamente e em absoluto uma invenção subjetiva de Imre Lakatos. E levando em consideração a base judaica de Imre Lakatos, permanece uma singularidade horrenda.
Imre Tóth, citado em Bandy 2009, 49.
Lakatos era uma influência tão dominante sobre as mentes dos outros membros do grupo que eles estavam preparados para obedecer a todas as suas instruções incondicionalmente. Em alguns aspectos, a atmosfera lembra a de uma seita, como a infame comunidade do Templo Popular de Jim Jones em Jonestown. Aparentemente, até a ideia de um suicídio coletivo foi mencionada em algum ponto, o que mostra que também no caso de Éva Izsák esse tipo de proposta pode ter sido a forma de Lakatos testar se havia limites à obediência de seus subordinados. “E quando Imre Lipsitz nos contou às margens do [rio] Körös que deveríamos também cometer suicídio, teríamos obedecido como fez Éva, mas então ele riu para mostrar que era só um ‘teste’ para ver se obedeceríamos ou não” (transcrição do interrogatório policial em 1945).
O filósofo da LSE John Worrall disse uma vez que Lakatos foi “um ser humano excepcional” (1976, 1). Informações de muitas fontes (algumas das quais citadas aqui) confirmam essa afirmação, mas não da forma que Worrall pretendia. O calculismo manipulador extremo de Lakatos, a falta de escrúpulos, a falta de cuidado por outras pessoas e a lealdade rígida a uma ideologia totalitária formam uma combinação que, se não for singular, certamente é muito rara.
Worrall, que também é o convocador do comitê no Prêmio Lakatos na LSE, parece ter uma peculiar má vontade para com caracterizações pessoais negativas de seu antigo professor. Então, quando com base nos fatos mencionados anteriormente um acadêmico descreveu Lakatos como “um brutamontes perigoso com algo como uma ficha criminal, e que mostrava consistentemente um padrão de dissimulação e malícia através das décadas” (Kadvany 2001, 314), Worrall chamou a descrição de “um comentário hediondo, talvez difamatório” (Worrall 2003, 83). A indignação de Worrall é descabida. Esse comentário alegadamente “hediondo” parece rastrear muito bem os fatos conhecidos sobre Lakatos. De acordo com Kadvany, foi na verdade Bernard Williams, o proeminente filósofo moral britânico, que uma vez descreveu Lakatos como “meio que um brutamontes”.
Alguém poderia dizer que, no que diz respeito ao tema central deste livro, no caso de Lakatos foi mais o coração, em vez de a razão, que tirou férias. Há alguma verdade nisso. Sim, uma certa frieza do coração, para não dizer pior, é evidente em alguns dos episódios descritos acima. Isso é corroborado, adicionalmente, pelos juízos de conhecidos e comentadores que diziam, entre outras coisas, que ele era “maligno” (Joseph Agassi, filósofo e colega), que ele era “um monstro pueril impossível de lidar, completamente incapaz de entender outras pessoas” (uma ex-namorada), que ele “não era completamente humano”, que “suas motivações e mente estão no lugar, mas o resto está em falta” (um colega matemático), que “ele não se importava com as pessoas”, que ele era “uma figura realmente satânica” e que “era medonho vê-lo em ação” (um colega historiador), que ele era “diabólico” (filósofa Ágnes Heller), que ele era visto como “um espírito maligno” e “demoníaco” (Endre Ságvári, ativista comunista), que ele era “diabólico” em sua “total desconsideração pelas pessoas” (István Márkus, um editor de periódico), que ele era “como o demônio ... absolutamente desumano ... que ele não tinha sentimentos humanos por ninguém ... e que ele atropelaria qualquer um para ficar à frente” (András Nagy, professor de economia), que ele era “uma figura satânica” (um editor, Zoltán Zsámboki), que ele era “inacreditavelmente inescrupuloso” (Péter Németh, um historiador da literatura), que ele “preencheria os critérios para o Transtorno de Personalidade Antissocial do atual DSM IV”[ref]N. do T.: DSM IV é sigla para Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, edição IV. Edição anterior à atual. Ver dsm5.org.[/ref] (Long 2002, 294). Em suma, muitas evidências apontam para a possibilidade de que Lakatos era um psicopata, que é de fato como ele foi descrito pela Dra. Klára Majerszky, que trabalhou no Instituto Nacional Psiquiátrico e Neurológico de Budapeste e que conhecia Lakatos pessoalmente antes da guerra (Bandy 2009, 123).[ref]Curiosamente, embora os autores do artigo de 2016 sobre Lakatos na Enciclopédia de Filosofia de Stanford pareçam estar cientes dos comentários severamente negativos contra o caráter de Lakatos de muitos de seus amigos e conhecidos próximos, tudo isso é inexplicavelmente desconsiderado e a parte biográfica do artigo começa com a alegre afirmação de que “Imre Lakatos era um amigo acolhedor e espirituoso”.[/ref]
Mas, por outro lado, tal déficit radical de empatia certamente não seria incompatível com uma falha cognitiva. E há evidência para isso, também.
Em Quando a Razão Tira Férias: Filósofos na Política (Encounter Books, 2016), traduzido na íntegra por este tradutor mas ainda sem editora para publicar no Brasil.