Malebranche: Crítica a estudiosos que se curvam a autores
"Se há algo de bom e verdadeiro num livro, lançam-se logo ao excesso: tudo nele é verdadeiro, tudo é bom, tudo é admirável. Comprazem-se até em admirar o que não entendem, e querem que todo o mundo admire consigo."
Há ainda um outro defeito de grande importância, no qual amiúde cai a gente de estudos, que é cismarem com um autor. Se há algo de bom e verdadeiro num livro, lançam-se logo ao excesso: tudo nele é verdadeiro, tudo é bom, tudo é admirável. Comprazem-se até em admirar o que não entendem, e querem que todo o mundo admire consigo. Derivam a própria glória dos louvores que dão a esses autores obscuros, porque assim persuadem os outros de que os entendem perfeitamente, e isto é um motivo de vaidade. Estimam-se acima dos demais homens porque entendem uma impertinência de um autor antigo, ou de um homem que talvez não se entendesse a si próprio. Quantos sábios suaram para esclarecer passagens obscuras dos filósofos e até de alguns poetas da Antiguidade; e quantos espíritos finos ainda há a se deliciarem com a crítica de uma palavra, e do sentimento de um autor! Mas é oportuno trazer alguma prova do que digo.
A questão da imortalidade da alma é sem dúvida uma questão importantíssima. Não podemos reclamar de os filósofos fazerem todos os esforços para resolvê-la; e, ainda que componham grossos volumes para provar de uma maneira bem frágil uma verdade que se pode demonstrar em poucas palavras, ou em poucas páginas, são desculpáveis. Mas eles são mui elegantes, e se metem em muita dificuldade para decidir em que Aristóteles acreditava. É, parece-me, bastante inútil aos que vivem agora saber se jamais houve um homem que se chamou Aristóteles, se tal homem escreveu os livros que trazem o seu nome, se ele entendeu uma tal cousa[ref]N. da T.: Na tradução, buscou-se emular o português seiscentista, no qual se usavam palavras como "cousa" e "dous", em vez de "coisa" e "dois".[/ref] ou outra numa passagem tal de suas obras. Isto não pode tornar um homem mais sábio, nem mais feliz – mas é importantíssimo saber se o que ele diz é em si mesmo verdadeiro ou falso.
Então é completamente inútil saber o que Aristóteles acreditou acerca da imortalidade da alma, embora seja utilíssimo saber que a alma é imortal. No entanto, podemos assegurar sem receio que há mais sábios que se puseram à obra de saber a sentença de Aristóteles sobre esse assunto, que a verdade da cousa em si, pois há quem tenha feito obras expressas para explicar o que esse filósofo acreditou, e não fizeram tanto para saber em que se deve acreditar.
Mas, ainda que muita gente tenha fatigado o espírito para resolver qual foi a sentença de Aristóteles, cansaram-se inutilmente, pois ainda não estão de acordo sobre essa questão ridícula. O que mostra que os seguidores de Aristóteles são bem infelizes por terem um homem tão obscuro para os alumiar, e que até afeta obscuridade, como mostra numa carta a Alexandre. A sentença de Aristóteles sobre a imortalidade da alma foi, então, por muito tempo, uma grandíssima questão, e mui considerável entre a gente de estudos. Mas para que ninguém imagine que eu digo sem bases nem fundamento, sou obrigado a relatar aqui uma passagem de La Cerda, algo longa e chata, na qual o autor reuniu diferentes autoridades sobre esse assunto, como sobre uma questão importantíssima. Eis suas palavras sobre o segundo capítulo De resurrectione carnis, de Tertuliano:
Esta questão é provocada por ambas as suspeitas válidas nas escolas: se, para Aristóteles, a alma era mortal ou imortal. E, de fato, filósofos nada ignóbeis asseveraram que Aristóteles colocou as nossas almas alheias à destruição. São eles, entre os intérpretes gregos e latinos: Amônio (ambos), Olimpiodoro, Filopono, Simplício, Avicena [sic]; assim recorda Pico della Mirandula, 1.4 Sobre o exame da vaidade, cap. 9, Teodoro Metocita, Temístio, São Tomás 2 Contra gentes cap. 7.9, e Física lição 12, ademais Metafísica lição 3 e 10 q. 5 art. 1, Alberto, tract. 2 De anima ad cap. 20, et tract. 3 cap. 13, Egídio lib. 3 De anima ad cap. 4, Durandus in 2 dist. 18 q. 3, Ferrarius loco citato Contra gentes, et late Eugubino l. 9 Da filosofia perene cap. 18, e, demais disso, o discípulo Teofrasto, que pôde conhecer a fundo a mente do mestre tanto pela boca quanto pelo cálamo.
À facção contrária foram não poucos padres, nem infirmes filósofos: Justino, em sua Exortação, Orígenes em Philosophouméno, e, como traz Gregório de Nazianzo in disp. Contra Eunom. e Gregório de Nissa p. 2 De anima cap. 4, Teodoreto De curandis Graecorum affectibus l. 3, Galeno na Historia philosophica, Pomponace l. De immortalitate animae, Simão Pórcio l. De mente humana, Caietanus 3 De anima cap. 2. A esse sentimento, como Aristóteles reputasse mortal a nossa alma, foram trazidos em parte por Alexandre de Afrodísias, discípulo, que assim soía interpretar a mente aristotélica, embora Eugubino (cap. 21 e 22) o isente. E de fato Alexandre parece ter coligido daí a mortalidade, e decerto da Metafísica 12, e daí coligiram São Tomás, Teodoro Metocita a imortalidade.
Além disso, creio que Tertuliano não abraçou nenhuma dessas duas opiniões, mas que achasse Aristóteles ambíguo nessa parte; e, assim, cita-o em favor da ambas as partes. Pois conquanto atribua a Aristóteles a mortalidade da alma, ainda cita 1 De anima cap. 6 em favor da opinião contrária, da imortalidade. De igual pensamento foi Plutarco, chamando para defender as duas opiniões o mesmo filósofo, em 1.5 De placitis philosoph. Pois no cap. 1 atribui a mortalidade, e no cap. 25 a imortalidade. Dentre os escolásticos que julgam que Aristóteles não foi constante em nenhuma das duas, senão dúbio e indeciso, estão Duns Scotus em 4 dist. 43 q. 2 art. 2. Harvé de Nédellec quodlib. q. II e I Senten. dist. I q. I. Agostino Nifo no opúsculo Da immortalidade da alma cap. I, e outros intérpretes recentes. Acho o meio termo o mais verdadeiro, mas a lei da Escola proíbe. Que eu convença com o peso equilibrado das autoridades.
Dou todas essas citações como verdadeiras com base na fé desse comentador, porque acharia perda de tempo verificá-las e não tenho todos esses belos livros de onde são tiradas. Tampouco lhes acrescentarei novas, porque não invejo a sua glória de tê-las recolhido bem, e perderia ainda mais tempo se quisesse fazê-lo, se para tal folheasse só os índices dos que comentaram Aristóteles.
Vemos então nessa passagem de La Cerda que a gente estudada que se passa por hábil deu-se muito ao trabalho de saber o que Aristóteles achava da imortalidade da alma, e que há quem seja capaz de fazer livros expressos sobre tal assunto, como Pomponácio, pois o principal propósito desse autor é mostrar que Aristóteles achou que a alma era mortal; e talvez haja gente que se dê ao trabalho de saber não só o que Aristóteles achava desse assunto, mas veja como uma questão importantíssima até a de saber se, por exemplo, Tertuliano, Plutarco ou outros acharam ou não que a sentença de Aristóteles foi que a alma era mortal – como temos muita ocasião para crer pelo próprio La Cerda, se refletirmos sobre a última passagem que acabamos de citar, “Porro Tertullianum” e o resto. Se não é muito útil saber o que Aristóteles achou da imortalidade da alma, nem o que Tertuliano e Plutarco pensaram que Aristóteles achava, o fundo da questão, a imortalidade da alma, é ao menos uma verdade necessária de saber. Mas há uma infinidade de cousas que é de todo inútil conhecer, e das quais por conseguinte é ainda mais inútil saber o que os antigos pensaram ao seu respeito. No entanto, dão-se ao trabalho de adivinhar as sentenças dos filósofos sobre esses assuntos. Encontram-se livros cheios desses exames ridículos, e são essas bagatelas que excitaram tantas guerras de erudição. Essas questões vãs e impertinentes, essas genealogias ridículas de opiniões inúteis, são para os sábios importantes objetos de crítica. Acham que têm o direito de desprezar aqueles que desprezam tais ninharias, e de tratar como ignorantes aqueles que se gloriam de os ignorar. Imaginam possuir de maneira perfeita a história genealógica das formas substanciais, e o século é ingrato se lhes não reconhece o mérito. Essas cousas fazem ver bem a fraqueza e a vaidade do espírito do homem; e que, quando não é a razão que regula os estudos, não só os estudos não aperfeiçoam a razão, como até a obscurecem, corrompem e pervertem por inteiro!
É oportuno notar aqui que, nas questões da fé, não é um defeito investigar em que acreditava, por exemplo, Santo Agostinho, ou um outro Padre da Igreja, nem mesmo investigar se Santo Agostinho acreditou naquilo que acreditaram seus antecessores, porque as cousas da fé só se aprendem pela tradição, e a razão as não pode descobrir. Com ser a crença mais antiga a mais verdadeira, é mister empenhar-se em saber qual era a dos mais antigos; e isto só é possível pelo exame das sentenças de várias pessoas que se seguiram em diversos tempos. Mas as cousas que dependem da razão são-lhes completamente opostas, e é mister não se ocupar com o que os antigos acreditaram para saber em que se deve acreditar. Entretanto, por uma inversão de espírito que desconheço, alguns se enfurecem quando lhes falamos em filosofia diferente de Aristóteles, mas não se incomodam se lhe falam em teologia diferente do Evangelho, dos Padres e Concílios. Parece-me que são ordinariamente os que gritam mais contra as novidades da filosofia que devemos estimar, que favorecem e defendem até com teimosia certas novidades de teologia que devemos detestar. Pois não é a sua língua que não aprovamos; por mais desconhecida que tenha sido na Antiguidade, o uso autoriza-a: são os erros que eles espalham, ou que defendem, ao favor dessa língua equívoca e confusa.
Em matéria de teologia, devemos amar a antiguidade, porque devemos amar a verdade, e a verdade encontra-se na antiguidade. Mas, em matéria de filosofia, devemos, ao contrário, amar a novidade, pela mesma razão de devermos amar a verdade, porque é preciso procurá-la e ter por ela curiosidade incessante. Se acreditássemos que Aristóteles e Platão fossem infalíveis, talvez só fosse necessário nos aplicarmos em entendê-los, mas a razão não permite que acreditemos nisso. A razão quer, ao contrário, que os julguemos mais ignorantes que os novos filósofos; pois que, no tempo em que vivemos, o mundo está dous mil anos mais velho e tem mais experiência do que no tempo de Aristóteles e Platão, como já dissemos, e os novos filósofos podem saber todas as verdades que os antigos nos deixaram, e encontrar ainda outras. Todavia, a razão não quer que ainda acreditemos nesses novos filósofos com base em sua mera palavra, em vez de nos antigos. Ela quer, ao contrário, que examinemos com atenção seus pensamentos, e que só nos rendamos quando não mais pudermos nos impedir de duvidar deles, sem nos pré-ocuparmos ridiculamente com sua grande ciência, nem outras qualidades do seu espírito.
Capítulo V do Livro II, "Da Imaginação", da obra "A Busca da Verdade - Onde se trata da natureza do espírito humano e do uso que ele deve fazer deste para evitar o erro nas ciências", 1674-5.
Tradução: Bruna Frascolla