Pavões, luxo e natureza humana
Como recursos e status social moldam o jogo da atração e do poder
É uma sexta-feira à noite em Manhattan. No canto de um bar sofisticado, um homem desliza um cartão preto de crédito após exibir um relógio Rolex reluzente. Ele não está sozinho — olhares interessados acompanham seus gestos, enquanto ao seu redor o murmúrio das conversas trata de imóveis milionários e viagens a destinos exóticos. A poucos metros dali, uma mulher com um vestido impecável e joias discretas ri com amigos. Sua beleza, não os adereços, é o que prende a atenção.
Essa anedota explicita uma lógica difícil de refutar. Se você mulher, é bem provável que a posição social, o status, a dominância ou o prestígio do um potencial parceiro amoroso importe bem mais para julgar sua atratividade. Se você for homem, provavelmente, tanto faz se a mulher em questão é CEO da Apple, modelo da Vogue ou balconista da quitanda da esquina.
Esse é um fato tão presente nas interações e conversas cotidianas que dificilmente alguém duvidaria de sua realidade. Mas há aqueles que duvidam. Já fui bloqueado por uma importante jornalista de ciência no então Twitter justamente por esse assunto. Ela afirmava por A+B que tal diferença de critério na escolha de parceiros entre os sexos se baseava em achismo. Por acaso, era o que eu estava estudando no mestrado naquela época. Me senti na obrigação de mostrar as evidências e assim o fiz. Copiei e colei cerca de 10 estudos sobre o assunto. A resposta da jornalista foi me xingar de machista, me mandar ir pra aquele lugar e me bloquear.
O fato é que tais diferenças na seleção de parceiros entre sexo feminino e masculino se mostra análoga àquela existente em outras espécies. Tente não ignorar totalmente o que sabemos sobre a continuidade entre as espécie pela teoria da evolução e você perceberá a dificuldade em explicar a coincidência de certas diferenças entre homens e mulheres serem análogas às diferenças observadas em machos e fêmeas de outras espécies.
Como mostram estudos de longa data, homens tendem a usar a ostentação de recursos como estratégia de atração, o que funciona muito bem, quer esse homem tenha a intenção explícita de atrair ou não -- o fato é que ele tende a chamar mais atenção. E isso não acontece só no recorte das sociedades modernas. É algo que podemos perceber se manifestando em sociedades de diversos tipos e de diversas épocas.
Na natureza, essa dança de acasalamento encontra seu paralelo perfeito no pavão. Com sua cauda repleta de "olhos" vibrantes, o macho se posiciona diante das fêmeas e inicia sua dança, uma performance extenuante que consome energia, mas tem um propósito claro: destacar sua saúde e vigor genético. A fêmea, imóvel, observa e escolhe. O pavão não está ostentando recursos, mas está ostentando a capacidade de arcar com custos de alguma natureza. E, assim como na cena urbana acima, ilustra-se como sinais de custo elevado podem ser vantajosos para atrair parceiros em um jogo evolutivo onde o esforço de escolha pertence a quem investe mais na reprodução -- aka, o sexo feminino.
Com este pano de fundo, exploraremos como a ostentação masculina de recursos desempenha papel crucial nas dinâmicas de atração, de relacionamentos casuais às uniões de longo prazo. Afinal, a ostentação é uma estratégia tão antiga quanto o próprio desejo.
A biologia por trás do luxo
Homens ostentam recursos como um reflexo de mecanismos evolutivos. Existe uma conexão profunda do comportamento humano atual com a seleção sexual e o investimento parental. Homens utilizam produtos luxuosos como uma extensão de seus atributos biológicos e sociais, enviando sinais claros ao "mercado amoroso". Assim como os pavões utilizam suas caudas exuberantes, os homens modernos utilizam carros, relógios e roupas para sinalizar status e atratividade.
Essa ostentação pode ser explicada por causas proximais e distais. Do ponto de vista proximal, adquirir bens luxuosos ativa mecanismos psicológicos de prazer associados ao status. Já as causas distais, ligadas à sobrevivência e reprodução, explicam por que o desejo e a atração por status foram selecionados ao longo de gerações.
Contextos de relacionamento e luxo
Eu sei, provavelmente, de algum lugar no interior de sua alma moldada pela via do desconstrucionismo ouve-se o grito: Depende, não é sempre assim! É mais complexo! Tudo isso depende do contexto! Sim, depende mesmo, mas isso não elimina a lógica evolutiva como causa última nesse processo.
Culturas diferentes oferecem diferentes oportunidades de ostentação, assim como o interesse em termos de relacionamento também determina o que vai chamar a atenção. Ou seja, contexto. Em relacionamentos de curto prazo, luxo é percebido como sinal de baixo investimento parental, como foco na atração imediata. É o caso de um presentinho de primeiro encontro, do jantar num restaurante pago, da ostentação de um carro luxuoso. Homens que gastam mais em bens conspícuos tendem a ser associados a intenções casuais, como mostram estudos sobre o impacto de carros esportivos e apartamentos luxuosos na atratividade masculina.
Isso me lembra muito uma conversa que tive com um amigo meu de infância pouca coisa mais velho que eu. Dizia ele que quando ficasse mais velho não compraria um conversível, compraria uma van para caber a família toda. Percebe-se desde já sua vocação para ter uma pancinha de homem de família. Hoje, cultiva já uma ninhada de 8 filhos -- sim, agora ele realmente tem uma van e uma pancinha.
Tá, mas qual o ponto aqui?
Existe uma cerca sensibilidade de fábrica no nosso organismo para perceber o que a aparência das pessoas significa, incluindo o modo como isso se manifesta no atual ambiente, isto é, no padrão de consumo, roupas, penduricalhos, automóveis. Usamos sistemas classificatórios antigos para esquadrinhar um contexto novo. É por isso que nossa intuição grita que uma pessoa que gasta muito tempo ficando sarada e fazendo vrumvrum numa moto não deve estar procurando formar uma família. É por isso que homens olham para as roupas que as mulheres utilizam e tiram o mesmo tipo de conclusão. Com isso, não estou defendendo a utilização dessas fórmulas estereotipadas, até porque elas não necessariamente acertarão em casos individuais. O que estou tentando fazer aqui é explicar por que na vida real tomamos decisões baseadas em certas heurísticas sobre com quem nos envolver que poderão contrastar com nosso discurso (por exemplo, peça para um defensor de que não existe erro, só variação da língua, para ele ensinar ao seu filho que está certo falar "pobrema"; ele não vai ensinar porque vai aspirar que seu filho fale um português perfeitamente machadiano).
Sexo e recursos: o caso dos sugar daddies e sugar babies
A ostentação de recursos como artifício para chamar a atenção de potenciais parceiros amorosos é tão generalizado que parece embasar muitas relações contemporâneas baseadas numa lógica subjacente muito antiga.
Como explorei longamente num texto anterior, a tradição dos presentes de noivado, a prostituição (que não por acaso é apelidada de profissão mais antiga do mundo) e a moderna prática das relações transacionais parecem partir de uma troca em que homens e mulheres oferecem aquilo que sabem que é desejado pelo sexo oposto: recursos barganhados por sexo.
Não pode ser por acaso que na grande maioria das vezes essa troca siga o padrão de homens desejando sexo e mulheres desejando recursos.
A troca de recursos por sexo é um comportamento que transcende a cultura humana e se manifesta em diversas espécies. A ave Eulampis jugularis ilustra isso, com fêmeas oferecendo sexo em troca de acesso a territórios ricos em alimentos protegidos por machos. Outro exemplo está nos pinguins-de-adélia (Pygoscelis adeliae), onde as fêmeas copulam com machos para obter pedras essenciais para a construção de ninhos. Esses comportamentos, longe de serem exclusividades humanas, mostram que a lógica evolutiva de reciprocidade e sobrevivência molda interações em todo o reino animal, com evidências robustas também entre invertebrados, primatas, aves e canídeos.
Entre primatas, nossos parentes mais próximos, a troca de sexo por recursos atinge níveis sofisticados. Chimpanzés, por exemplo, compartilham carne de alta qualidade obtida por machos caçadores em troca de oportunidades de acasalamento — um comportamento descrito como a "hipótese da troca sexo-bife". Machos que distribuem mais recursos tendem a copular com mais frequência ao longo do tempo, configurando uma lógica mutuamente benéfica: fêmeas evitam os custos da caça, enquanto machos maximizam suas chances reprodutivas (um exemplo disso são os Macaca Thibetana).
Esses exemplos reforçam a ancestralidade do comportamento, evidenciando que a troca de sexo por recursos é uma estratégia adaptativa enraizada em nossa história evolutiva.
O "instinto" do luxo
Desde tempos imemoriais, o processo de seleção de parceiros moldou profundamente as dinâmicas humanas. E embora a modernidade tenha transformado nossos cenários sociais, a biologia ainda sussurra suas diretrizes -- não porque a cultura ainda não solapou a biologia, mas porque a cultura é uma continuidade desta. Sendo assim, qual a lógica por trás da preferência intercultural pela ostentação e atração por indivíduos altos em status social e recursos?
Existem duas teorias principais que explicam de maneira muito elegante as raízes evolutivas dessas tendências: a teoria do investimento parental e a teoria da sinalização custosa.
Segundo a teoria do investimento parental, o comportamento reprodutivo está ligado ao custo reprodutivo. Considerando que os sexos feminino e masculino arcam com diferentes custos, isso explicaria porque antes mesmos de surgir algo complexo e emergente como a cultura, já haveria motivo para fêmeas e machos já buscarem características diferentes e terem estratégias próprias para sustentar suas preferências. Em grande parte das espécies o resultado de fêmeas terem células reprodutivas mais caras e escassas é a maior seletividade na escolha do parceiro, enquanto os machos tendem a se comportar de maneira menos seletiva. É como se a sexualidade pudesse ser vista como um jogo de poker no qual homens têm muitas fichas para gastar displicentemente, enquanto as mulheres precisam pensar melhor em qual rodada apostar suas poucas fichas.
Esse padrão, amplamente observado na natureza, faz com que os machos entrem em competição acirrada para se destacarem. No reino animal, o pavão macho exemplifica isso ao exibir uma cauda suntuosa. Apesar de ser um convite para predadores e consumir enorme energia, essa exuberância sinaliza força e boa genética. De forma similar, homens humanos há milênios exibem “penas sociais” — seja na forma de dotes ou, na era contemporânea, por meio de carros de luxo, relógios caros ou um estilo de vida opulento. E esses símbolos de status e sucesso ressoam fortemente nas preferências femininas.
A teoria da sinalização custosa de Zahavi complementa esse quadro ao sugerir que esses traços dispendiosos não são apenas uma ostentação superficial, mas verdadeiros selos de qualidade. Quanto mais caro ou arriscado é manter um traço — como uma Ferrari na garagem ou o arranjo impecável de um casamento tradicional repleto de dotes —, mais confiável ele se torna como indicador de aptidão. No mercado humano de acasalamento, riqueza não apenas comunica habilidade de adquirir recursos, mas também capacidade de mantê-los sob pressão, um sinal de competência em um ambiente competitivo.
Essa lógica, traduzida culturalmente, também se manifesta no papel do dote em casamentos tradicionais ou na popularidade de itens de luxo entre homens que buscam impressionar potenciais parceiras. Para as mulheres, a preferência por parceiros bem-sucedidos é uma estratégia adaptativa que visa garantir segurança e estabilidade, pilares do sucesso reprodutivo e da sobrevivência da prole.
No final das contas, a exibição de riqueza — seja uma cauda colorida ou um relógio de grife — é um eco das estratégias milenares de sobrevivência e reprodução. Assim, em um mundo de arranha-céus e tecnologias avançadas, a biologia continua a moldar os gestos humanos, transformando bens materiais em mensagens universais de aptidão e potencial.
Pesquisa e realidade: O que homens e mulheres escolhem na vida real?
Existem muitas críticas a esses estudos. A maioria delas tem uma conotação mais política e moral do que técnica. Essas críticas têm seu lugar, mas hoje vou me concentrar em outro tipo. Uma das ressalvas mais meritórias, na minha opinião, é a da discrepância entre as preferências reais e as ideias. Em outras palavras, o que uma pessoa relata como parceiro ideal pode diferir muito do perfil de parceiro que ela escolhe numa situação real.
É basicamente isso que mostram os estudos de speed dating. Essa modalidade de encontro não é comum no Brasil. Ela consiste em uma sala com mesas e cadeiras onde homens e mulheres se revezam por um tempo limitado em que podem conversar entre si. Se rolar alguma química, o casal pode trocar contatos e levar a interação para fora dali. Será que os mais bem sucedidos nesse contexto são aqueles que têm as características correspondentes ao ideal do sexo oposto, segundo os estudos de autorrelato? As evidências mostram que não exatamente.
Um estudo publicado em 2024 corroborou resultados já encontrados em estudos anteriores sobre speed dating: ambos os sexos se sentem mais atraídos por quem eles julgam como mais bonitos, enquanto outros critérios, como status econômico ou traços de personalidade, mostraram menor impacto nas suas escolhas reais.
Pesquisadores que subscrevem a uma tradição mais sociológica, centrada em causas proximais (como a cultura), interpretam esses resultados como uma limitação da ótica evolucionista. Eu vejo diferente — não só eu, mas outros pesquisadores também, claro.
O que faz uma pessoa se sentir atraída por outra num speed dating é o mesmo que nos atrai numa pessoa em qualquer cenário com tempo de interação limitado. Você não tem como saber muito sobre a pessoa, então sua atração por ela estará condicionada a critérios superficiais, rápidos de avaliar. Nesse contexto, estímulos visuais se tornam mais salientes. Um desses critérios é justamente a beleza física. Você não vai ter certeza sobre os valores da pessoa, sobre se é alguém respeitoso, responsável, que tem onde cair morto e que paga seus impostos, ou se é um psicopata sustentado pelos pais e que guarda troféus no congelador. É como qualquer um na balada: você vai dar uma boa olhada para a fuça da pessoa — se muito, vai deixar ela falar meia dúzia de palavras para ver se concatena lé com cré, se é alfabetizada e por aí vai. Isso não contraria nenhuma previsão evolutiva. A previsão evolutiva é que quando existe a possibilidade de escolha livre e ilimitada, homens e mulheres escolhem coisas levemente diferentes.
Outro ponto importante é que na vida real as pessoas não se sentem seduzidas por causa de uma característica, mas por conta de uma gestalt, um amontoado de características cujo todo não corresponde à soma das partes. O status social dos potenciais parceiros tende, em média, a ser mais importante para as mulheres, mas isso não significa que elas só levem em conta esse atributo. Do mesmo modo, beleza importa para mulheres, mas muito mais para o sexo masculino, o que também não significa que os homens considerem apenas essa característica.
Na vida real, méritos compensam deméritos. Por exemplo, um cara pode não ser muito bonito, mas pode ser um cara muito legal. Ou o cara pode não ser muito legal, mas pode ser tão bonito que as mulheres compram o problema que ele representa. O ponto é que numa interação cotidiana raras são as vezes em que se pode dizer com segurança com foi o atributo que fez uma pessoa seduzir uma outra. Só em estudos controlados podemos fatiar os critérios de atratividade e ver qual deles mais impactou na escolha de parceiros. É por isso que os resultados do speed dating vão tender a não concordar com o que se obtém em estudos de autorrelato onde se descreve o parceiro ideal. No cotidiano não estamos fazendo escolhas com base no que idealizamos, mas com base nas limitações contextuais apresentadas pela realidade. Como diz a música dos Rolling Stones, You Can't Always Get What You Want.
Conclusão
Você deve estar se perguntando o que todo esse palavrório significa. Talvez você esteja mais atento aos fatos e para você só importe o que os dados dizem, e o que eles estão dizendo é que homens e mulheres se parecem bastante no que querem de seus parceiros, mas no que resolvem discordar, discordam pra valer. E status social é um desses pontos.
Você também pode estar lendo esse texto com lentes políticas. Outro dia ri de uma piada de mal gosto no X (antigo twitter) em que um cara dizia que “amor de mulher é Real ($)”. Eu ri da piada, mas, por favor, isso é só uma piadoca (se você for mulher imagino que não riu). Por favor, não use o presente texto ou os dados apresentados aqui para apoiar piadas assim, nem filosofias espúrias e ressentidas. Não estou defendendo qualquer lema ou filosofia social ou de vida aqui. Se esse é seu interesse, talvez o presente artigo não seja para você.
Algumas pessoas interpretam a ciência como um empreendimento destinado a defender certos grupos, como mulheres e outras minorias. Eu não vejo a ciência dessa forma política (daí não se segue que valores não estejam entremeados na atividade de pesquisa). Ciência tem a ver com descobrir como a natureza funciona. Aliás, veja se a citação do presidente da American Sociological Association não segue exatamente nessa linha:
A sociologia, como ciência, não está interessada em tornar o mundo um lugar melhor para se viver, em encorajar crenças, em difundir informações, em divulgar notícias, em expor impressões de vida, em liderar multidões, ou em guiar o navio do estado. A ciência está diretamente interessada apenas numa coisa: descobrir conhecimento.
Ciência tem a ver com salvaguardas para diminuir os vícios e vieses, não para mergulhar neles resolvendo usar a ciência em fla x flus políticos. No caso das ciências sociais, a pesquisa bem feita tem a ver com entender como se dão as dinâmicas sociais. O contrário disso é pesquisa advocatícia, para usar um termo empregado pela filósofa Susan Haack. Ou seja, se você ciência como pesquisa advocatícia, o presente texto também não vai agradar.
Digo tudo isso para deixar claro que estou ciente de que o tema aqui tratado afeta certas sensibilidades. Meu plano não é desmerecê-las, mas diferenciar ser de dever ser — a navalha de Hume, em bom filosofês. É forte para a linguagem científica dizer que é fato é que a seleção sexual afetou a constituição psicológica de homens e mulheres, o que traz muitas diferenças constitutivas que se manifestam na cultura, então vou dizer apenas que é altamente provável, de acordo com tudo que sabemos hoje sobre evolução, que o Homo sapiens não seja o único animal a andar sobre a terra que tenha passado incólume pelo processo de evolução por seleção sexual.
Desse modo, é sim altamente provável e esperado que muitos dos comportamentos esperados entre os sexos, mesmo que estejam embebidos na cultura, tenham a evolução como causa última. A natureza se esgueira por entre as regras, as crenças culturais e os papéis de gênero.