Diferenças de sexo no cérebro humano
Por Larry Cahill*
No começo de 2013, a Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA) ordenou que os fabricantes do bem conhecido sonífero Ambien (zolpidem) cortassem sua dose recomendada pela metade - mas apenas para mulheres. Essencialmente, a FDA estava reconhecendo que, apesar de testes abrangentes antes de a droga ser liberada no mercado, milhões de mulheres haviam tomado uma dose excessiva de Ambien por 20 anos. Em 9 de fevereiro de 2014, o programa 60 Minutes, da CBS, chamou a atenção para esse fato - e para diferenças de sexo em geral - ao fazer firmemente duas perguntas: 'por que isso aconteceu?' e 'homens e mulheres são tratados igualmente na pesquisa e na medicina?'.[1]
A resposta para a primeira pergunta é que a comunidade biomédica tem operado há tempos com um pressuposto que é cada vez mais visto como falso: que o sexo biológico pouco importa, se é que tem alguma importância, na maioria das áreas da medicina. A resposta para a segunda pergunta é que não, a pesquisa biomédica de hoje não está tratando homens e mulheres igualmente. Quais são algumas das razões principais para o pressuposto falso da comunidade biomédica, e por que essa situação está finalmente mudando? Quais são algumas das controvérsias aparentemente sem fim sobre as diferenças de sexo no cérebro geradas por pesquisadores “antidiferença de sexo”? E o que está na raiz da resistência contra a pesquisa sobre diferenças entre sexos no cérebro humano?
Por que o sexo não tinha importância
Por muito tempo, para a maioria dos aspectos das funções cerebrais, as diferenças de sexo mal importavam para a corrente dominante da neurociência. As únicas diferenças de sexo que preocupavam a maioria dos neurocientistas envolviam regiões cerebrais (primariamente uma estrutura profunda no cérebro chamada hipotálamo) que regulam hormônios e comportamentos sexuais.[2] Os neurocientistas ignoravam quase que completamente possíveis influências do sexo em outras áreas do cérebro, presumindo que os sexos compartilhassem qualquer coisa que fosse fundamental no que diz respeito à função cerebral. Por outro lado, a corrente dominante da neurociência via quaisquer diferenças aparentes de sexo no cérebro como não fundamentais – algo a ser entendido depois que descobrissem os fatos fundamentais. Por essa lógica, não era um problema estudar quase exclusivamente machos, uma vez que fazê-lo supostamente permitia aos pesquisadores entender tudo o que era fundamental nas fêmeas, sem ter que considerar os aspectos complicadores dos hormônios femininos. Até hoje, os neurocientistas estudam muito mais os animais machos.[3]
Para piorar as coisas, o estudo das diferenças de sexo no cérebro foi por muito tempo considerado de mau gosto por grandes setores da academia.[4] Sobre a pesquisa de diferenças de sexo, Gloria Steinem disse uma vez que é “antiamericano, é coisa de maluco fazer esse tipo de pesquisa”.[5] De fato, por volta do ano 2000, colegas experientes me aconselharam fortemente contra estudar as diferenças de sexo porque isso “mataria” a minha carreira.
Por que o sexo importa
Eu sobrevivi depois de rejeitar o conselho dos meus colegas, e, na verdade, muitos neurocientistas por fim perceberam, como eu, que seu pressuposto profundamente entranhado de que o sexo não importa é apenas e simplesmente errado.
Comecemos pela pesquisa animal. Apesar do fato de que a maioria dos neurocientistas ainda usa muito mais machos em seus estudos, outros neurocientistas têm gerado dados consideráveis demonstrando influências de sexo no funcionamento cerebral em todos os níveis, incluindo o nível molecular[6],[7],[8] e de canais de íons.7 Muito comumente essas influências de sexo são uma completa surpresa para os pesquisadores. Crucialmente, a pesquisa animal demonstra claramente que os cérebros de mamíferos em particular estão cheios de influências de sexo que não podem ser explicadas pela cultura humana. Desse modo, a pesquisa animal prova que o cérebro mamífero humano deve conter todo tipo de influências de base biológica – das pequenas às grandes – que não podem ser explicadas simplesmente pela cultura humana (mesmo embora haja certas contribuições culturais em muitos casos). A pesquisa animal torpedeou o navio do “é tudo cultura humana” que mandava nos mares acadêmicos desde os anos 1970 quando o assunto era a diferença entre os sexos.
Mas as evidências das influências de sexo sobre o funcionamento cerebral não estão restritas à pesquisa animal. A pesquisa envolvendo humanos tem gerado descobertas igualmente impressionantes, duas das quais eu destaco aqui, uma sobre a estrutura do cérebro humano, a outra sobre a genética do cérebro humano.6-8
Um estudo seminal recente veio de pesquisadores da Universidade da Pensilvânia. Eles usaram uma forma de imageamento por ressonância magnética (MRI) chamada imageamento por tensor de difusão (um modo de medir a substância branca do cérebro, ou axônios através dos quais os neurônios se conectam) numa grande amostra de homens e mulheres (428 homens e 521 mulheres, idades entre 8 e 22 anos).[9] Ao longo de várias abordagens de análise diferentes, encontraram um resultado notável e consistente: os cérebros das mulheres exibem padrões significativamente mais fortes de interconectividade entre regiões cerebrais – incluindo entre os hemisférios cerebrais – do que os cérebros dos homens, que por sua vez exibem conectividade média significativamente maior dentro de regiões cerebrais locais (padrão que os autores chamaram de modularidade).
Esse resultado notável se encaixa muito bem com uma descoberta altamente consistente através da literatura sobre diferenças de sexo: os cérebros dos homens tendem a ser mais assimetricamente organizados entre os hemisférios do que os das mulheres.[10] Importantemente, os autores não acharam interações idade-por-sexo apesar de terem amplo poder estatístico para achar tais interações. Isso significa que não podemos explicar as diferenças de sexo em seus resultados como sendo simplesmente devidas a experiências culturais diferentes entre homens e mulheres.
Os resultados do estudo da Pensilvânia também são consistentes com os estudos com imageamento por tensor de difusão por Neda Jahanshad e colegas, que acharam maior conectividade média entre hemisférios em mulheres quando comparadas a homens.[11],[12] (Impressionantemente, com algumas abordagens analíticas esses pesquisadores podem classificar redes de conectividade cerebral com base em sexo com 93% de precisão.12) Enquanto nós podemos e devemos debater o que significarão funcionalmente, em última análise, esses tipos de descoberta anatômica, as evidências nos deixam pouca dúvida razoável de que os cérebros masculinos e femininos exibem, em média, padrões divergentes de interconectividade estrutural, particularmente entre os hemisférios. Numa revisão abrangente de estudos de conectividade no cérebro humano de vários anos atrás, Gaolang Gong e colegas concluíram que “deveria ser obrigatório considerar o gênero quando se projeta experimentos ou se interpreta resultados de conectividade/rede cerebral na saúde e na doença”.[13] Os dados desde então confirmam esse ponto de vista.
Um segundo estudo importante ressalta o fato de que as diferenças de sexo existem até no nível genético em humanos. Quando David Cribbs e outros pesquisadores realizaram uma análise abrangente dos padrões de expressão cerebral de genes relacionados ao sistema imunológico no envelhecimento e na doença de Alzheimer (DA), encontraram padrões específicos ao sexo de expressão dos genes, em ambas as condições.[14] Particularmente, compararam os padrões de expressão gênica em duas regiões que são críticas para a alta função cognitiva e conhecidas por desenvolver patologias do tipo DA: o hipocampo e uma região do córtex frontal chamada giro superior frontal. O hipocampo foi mais propenso a reações de gene de tipo imunológico em mulheres que em homens, enquanto o giro superior frontal foi mais susceptível a reações de gene de tipo imunológico em homens que em mulheres. Estudos como esse provam que os mecanismos biológicos de envelhecimento e doença cerebrais não podem ser presumidos como os mesmos em homens e mulheres.
A reação contrária
Talvez sem surpresa, o crescimento vertiginoso na pesquisa de diferenças entre sexos parece ter gerado uma contra-reação de alguns setores acadêmicos, especialmente de quem não é neurocientista. Em alguns casos essa contra-reação é justificada, como quando cientistas fazem objeção a exageros crassos sobre as diferenças de sexo muitas vezes feitos em best-sellers (chamados às vezes de “neurolixo”). Mas, no essencial, essa contra-reação parece refletir uma confusão sobre alguns fatos-chave da biologia do cérebro. Deixando de lado os rotuladores (tais como a psicóloga que chama as pessoas que estudam as diferenças de sexo no cérebro de “neurossexistas”[15]), também os não-neurocientistas que analisam hipercriticamente uma fração pequena da literatura da neurociência enquanto aparentemente permanecem ignorantes sobre o resto[16], foquemo-nos nos argumentos principais dados pelos autores “antidiferença de sexo”.
Primeiro, os autores antidiferença de sexo argumentam que há poucas diferenças (se alguma) de comportamento entre homens e mulheres. Invariavelmente eles se fiam em estudos meta-análises que analisam padrões através de muitos estudos publicados.[17] Tipicamente, essas meta-análises examinam a literatura para o tamanho das diferenças de sexo (neste caso, o tamanho da diferença em performance média entre homens e mulheres) em fatores isolados, tais como compreensão de leitura ou a habilidade de rotacionar mentalmente um objeto tridimensional. E muitas vezes (embora nem sempre) essas meta-análises sugerem que, com algumas poucas exceções tais como o comportamento sexual e a agressão, apenas diferenças muito pequenas (e por implicação descartáveis) existem no comportamento de homens e mulheres. Mas há ao menos dois problemas com esse tipo de análise. Primeiro, como ilustrado muito firmemente por Sarah Burnett[18], é simplesmente incorreto concluir que, porque uma diferença média entre homens e mulheres é quantitativamente pequena, então essa diferença terá poucas consequências práticas significativas. Segundo, alegar que não há nenhuma diferença de sexo confiável com base na análise de funções isoladas é bem parecido com concluir, depois de exame cuidadoso do vidro, pneus, pistões, freios etc., que há poucas diferenças significativas entre um Volvo e um Corvette.
Uma análise mais sensata é uma que calibra melhor os padrões completos de comportamento de homens e mulheres. Num estudo fascinante, Marco Del Giudice e seus colegas fizeram exatamente isso.[19] Usando uma forma de análise estatística chamada modelagem multigrupo de variável latente, que essencialmente avaliou o tamanho das diferenças de sexo pela combinação de numerosos fatores isolados, eles encontraram diferenças de sexo muito grandes no comportamento com uma sobreposição tão pequena quanto 10% entre as distribuições de homens e mulheres. Concluíram, firmemente, que “a ideia de que há apenas diferenças pequenas entre os perfis de personalidades de homens e mulheres deve ser rejeitada por ser baseada em metodologia inadequada”.
Outra forma de derrotar a ideia de que não há nenhuma diferença de comportamento entre homens e mulheres é considerar comportamentos estereotipicamente masculinos e femininos. Bobbi Carothers e Harry Reis fizeram exatamente isso quando analisaram as diferenças de sexo numa variedade de comportamentos orientados estereotipicamente por gênero, tais como jogar golf ou vídeo-games, assistir à pornografia ou a talk shows, tomar um banho e conversar ao telefone.[20] Usando essa análise, os pesquisadores relatam diferenças de sexo extremamente grandes, bimodais (também chamadas de taxônicas) que, como notam corretamente, não dizem absolutamente nada sobre o grau ao qual esses comportamentos taxônicos resultam de fatores biológicos ou ambientais. Pode não ser justo presumir que comportamentos estereotipados resultam somente de fatores ambientais. (De fato, foi mostrado que as preferências ocupacionais estereotípicas masculinas e femininas são notavelmente consistentes através de 53 países, do Paquistão à Noruega, sob condições culturais enormemente variáveis.[21] Carothers e Reis invalidam terminantemente a ideia de que não há diferenças de sexo grandes em média de grupos no comportamento humano, fora de alguns domínios limitados.20
Pior ainda para os autores antidiferença de sexos é o fato de que uma falta de diferença de sexo completa e com concordância universal num comportamento em particular não significa nada sobre se há ou não diferenças de sexo nos substratos neurais desse comportamento. O neurocientista Geert de Vries faz a defesa mais convincente desse caso, que até seus próprios colegas costumam esquecer.[22] Focando-se numa variedade de modelos animais, de Vries mostra que as diferenças de sexo no cérebro mamífero muitas vezes existem para impedir diferenças de sexo no nível do comportamento (ao compensar por diferenças neurais ou hormonais subjacentes) em vez de criar diferenças de sexo no nível comportamental. Mas entender essas diferenças de sexo compensatórias, para tratar apropriadamente disfunções cerebrais em homems e mulheres, é tão importante quanto entender as diferenças de sexo que induzem a diferenças comportamentais.
Um segundo argumento que os autores antidiferença de sexo às vezes usam é que não há realmente cérebros masculinos e femininos; em vez disso, homens e mulheres têm um único cérebro “intersexo”. Tentando dar apoio a essa opinião, Daphna Joel[23], que disse que a pesquisa com diferença entre sexos faz seu “sangue ferver”[24], corretamente aponta o que neurocientistas sabem por causa da pesquisa animal desde os anos 1970 ou antes: que ambos machos e fêmeas estão expostos tanta a influências masculinizantes quanto a feminilizantes. Ela também se refere corretamente a ambos os cérebros masculino e feminino como “mosaicos” de tais influências – e ela está longe de ser a primeira pessoa a fazê-lo.6 Mas porque a maioria dessas influências podem variar em grau e circunstâncias, ela conclui que “nós todos temos . . . um cérebro intersexo (um mosaico de características cerebrais ‘masculinas’ e ‘femininas’)”. A falácia em seu argumento está na implicação de que “nós todos” (homens e mulheres) temos um único cérebro mosaico e “intersexo”. O que ela claramente quer dizer com o termo intersexo é “unissex” – há apenas um. Entretanto, zero evidências apoiam a opinião de que, através do curso normal do desenvolvimento, mamíferos machos e fêmeas, incluindo os humanos, possuem cérebros que têm em média a mesma combinação de características masculinas e femininas – que eles possuem um único cérebro mosaico e unissex. A opinião unissex também falha em acomodar uma série de fatos, tais como as diferenças notáveis entre hemisférios na inativação do cromossomo X vistas apenas em cérebros femininos, as consequências da inativação incompleta do X (novamente, só em cérebros femininos), efeitos diretos ligados ao cromossomo Y sobre a função cerebral em homens, ou a incidência de dislexia que é até 10 vezes mais frequente em homens que em mulheres, para dar apenas alguns.[25],[26],[27],[28] Nós não somos unissex, e cada célula do cérebro de todo homem e de toda mulher sabe disso.
“Mas espere”, dizem os autores antidiferença de sexo, “o cérebro é plástico” – isto é, moldado pela experiência. Um grupo de autores usa a palavra “plasticidade” no título de seu artigo três vezes para assegurar que entendemos sua importância.[29] (Como alguém que estudou a plasticidade cerebral por mais de 35 anos, acho divertida a insinuação de que ela nunca me ocorreu.) Através do argumento da plasticidade – também usado explicitamente pela neurocientista Lise Eliot em seu livro “Pink Brain Blue Brain” – pequenas diferenças de sexo em cérebros humanos ao nascer são aumentadas pela influência da cultura sobre a plasticidade do cérebro.[30] Eliot argumenta, adicionalmente, que podemos evitar “lacunas problemáticas” entre os comportamentos de homens e mulheres adultos (uma contradição curiosa, aliás, com a opinião de que não há diferenças comportamentais entre os sexos) ao encorajar meninos e meninas a aprender contra suas tendências inatas.
É crítico entender onde estão as falácias nesse argumento. Primeiro, é falso concluir que porque um comportamento em particular começa pequeno nas crianças e cresce, que o comportamento tem pouca ou nenhuma base biológica. Basta pensar em preferência manual, andar e linguagem para enxergar esse ponto. Segundo, esse argumento pressupõe que as influências “culturais” humanas são de algum jeito formadas independentes das predisposições biológicas existentes no cérebro humano. Mas, em terceiro lugar, e mais importantemente, é a falácia-chave no argumento da plasticidade: a implicação de que o cérebro é perfeitamente plástico. Não é. O cérebro é plástico somente dentro dos limites definidos pela biologia.
Para entender esse ponto crítico, consideremos a preferência manual. É de fato possível, graças à plasticidade cerebral, forçar uma criança com uma pequena tendência a usar a mão esquerda a se tornar um adulto destro. Mas isso não significa que essa prática é uma boa ideia, ou que a criança é capaz de se tornar tão habilidosa com sua mão direita quanto poderia ter se tornado com sua mão esquerda se ela tivesse tido permissão de desenvolver suas tendências naturais sem impedimentos. A ideia de que nós devemos usar a plasticidade do cérebro para trabalhar contra predisposições inatas masculinas ou femininas nos cérebros das crianças é tão mal concebida quanto a ideia de que devemos encorajar crianças canhotas a usar a mão direita.
A presença de limites biológicos à plasticidade – e por conseguinte a presença de limites ao quão afetado o cérebro pode ser pela experiência – é talvez esclarecida com mais intensidade nos estudos elegantes de J. Richard Udry. Em seu importante mas subvalorizado artigo intitulado “Biological Limits of Gender Construction” [“Limites Biológicos à Construção de Gênero”], Udry examina a interação entre dois fatores – o quanto uma mãe encorajou sua filha a se comportar de forma mais “feminina”, e o quanto a filha foi exposta a influências hormonais masculinizantes no útero – sobre o quão “feminina” a filha se comportava quando mais velha.[31] A figura abaixo ilustra os achados mais importantes.
O gráfico ilustra que, de fato, quanto mais as mães encorajavam a “feminilidade” em suas filhas, mais feminina era a forma como as filhas se comportavam quando adultas, mas apenas naquelas filhas expostas a pouco hormônio masculinizante no útero. Crucialmente, quanto maior a exposição aos efeitos masculinizantes hormonais no útero (linhas descendentes), menos eficazes era o encorajamento da mãe, até o ponto em que o encorajamento ou não funcionou (linha com quadrados) ou até tendeu a produzir o efeito oposto no comportamento das filhas (linha com losangos).
Todos aqueles que desejam entender as influências de sexo no cérebro humano precisam compreender totalmente as implicações da literatura animal, e depois pensar nos dados de Udry, que capturam um fato incontestável da ciência do cérebro: sim, cérebros são plásticos, mas apenas dentro dos limites definidos pela biologia. Não é o caso, decididamente, que a experiência ambiental pode transformar qualquer coisa em qualquer coisa, e de forma igualmente fácil, no cérebro. O argumento capcioso da plasticidade invocado pelos autores contra diferenças de sexo parece ser apenas uma encarnação moderna do ponto de vista derrubado há muito tempo de que o funcionamento do cérebro é como o da “tabula rasa”, a ideia de que os cérebros de todas as pessoas começam como lousas em branco e que assim são igualmente moldáveis a se tornarem qualquer coisa através da experiência.[32]
O que Darwin de fato disse
Deveríamos ter esperado desde o princípio que os cérebros de homens e mulheres são uma mistura complexa de similaridades e diferenças, ao menos se acreditamos na evolução como descrita por Charles Darwin. Darwin não acreditava que a evolução prosseguia pela seleção natural. Na verdade, ele foi completamente claro que, em sua opinião, a evolução apenas pela seleção natural deve falhar. Ele sabia que a seleção natural sozinha falhava em explicar fenômenos demais (mais notoriamente o rabo do pavão). O que Darwin de fato disse foi que a evolução prosseguia na maior parte através de dois distintos mecanismos: a seleção natural e a seleção sexual. A primeira age com base na condição de um organismo sobreviver; a última age sobre a condição de que ele produza um bebê. Em seu segundo livro, “The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex” [“A Descendência do Homem, e a Seleção em Relação ao Sexo”], Darwin desenvolveu essa ideia (primeiro apresentada na edição original do “Origem das Espécies”) e tornou explícita sua opinião de que os efeitos benéficos da seleção sexual devem às vezes contrabalançar os efeitos negativos da seleção natural (mais uma vez, lembremo-nos do rabo do pavão).
Depois de receber muitas críticas por esse conceito, como ele também recebeu pela seleção natural, Darwin disse que “minha convicção no poder da seleção sexual se mantém inabalada”.[33] A seleção sexual é uma força que, por definição, frequentemente age de macho para macho e de fêmea para fêmea. É, portanto, uma força que deve produzir diferenças de sexo de muitos tipos no cérebro e na mente, como Darwin discutiu em detalhe. Assim, se acreditamos na evolução como Darwin a descreveu (como uma mistura complexa de forças de seleção natural e sexual), então devemos acreditar que ela produziu em homens e mulheres corpos e cérebros que são uma mistura complexa de similaridades e diferenças, das pequenas às grandes – exatamente como ela parece ter produzido.
A evolução produziu cérebros mamíferos que estão cheios de similaridades e diferenças de base biológica, até ao nível molecular. A evolução também produziu em homens e mulheres corpos que estão cheios de similaridades e diferenças, inclusive no coração, no fígado, nos pulmões, no sistema imunológico e até mesmo nos joelhos.[34] Insistir que de alguma forma – magicamente – a evolução não produziu influências sexuais de base biológica de todo tipo e todo tamanho no cérebro humano, ou que essas influências, de alguma forma – magicamente – produziram pouco ou nenhum efeito apreciável no funcionamento do cérebro (no comportamento) equivale a negar que a evolução se aplica ao cérebro humano.
Pressupostos falsos
Na raiz da resistência à pesquisa sobre influências de sexo, especialmente no que diz respeito ao cérebro humano, está um pressuposto profundamente entranhado, implícito e falso de que se homens e mulheres são iguais [devem ser tratados de forma igualitária], então homens e mulheres devem ser idênticos. Isso é falso. A verdade é que é claro que homens e mulheres são iguais (todos os seres humanos são iguais), mas isso não significa que eles são, na média, os mesmos. 2 + 3 = 10 – 5, mas essas expressões não são as mesmas. E, na verdade, se dois grupos realmente são diferentes em média de algum jeito, mas estão sendo tratados como se fossem os mesmos, então eles não estão sendo tratados com igualdade na média.
Infelizmente, é exatamente esse o caso na pesquisa e na medicina hoje. Mulheres e homens não estão sendo tratados com igualdade, porque em geral as mulheres estão sendo tratadas como se fossem idênticas aos homens. Para fazer progresso de verdade em melhorar a saúde de homens e de mulheres, e para evitar mais Ambiens ou coisa pior, precisamos que neurocientistas e não-neurocientistas determinem se estão também operando sobre o falso pressuposto de que “igual” significa “idêntico”. Se estão, joguem fora esse pressuposto. A verdadeira equidade dos sexos assim exige.
*Larry Cahill, PhD, é professor de neurociências e comportamento na Universidade da Califórnia em Irvine, EUA. Além de estudar diferenças neurobiológicas entre os sexos, estuda também os mecanismos neurais da memória influenciada pelas emoções.
Referências
[1] http://www.cbsnews.com/news/sex-matters-drugs-can-affect-sexes-differently/
[2] Levine, S. Sex differences in the brain. Scientific American 1966; 214, 84-90.
[3] Beery, A and Zucker, I. Sex bias in neuroscience and biomedical research. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 2011; 35, 565-572.
[4] Eagly, A et al., Feminism and Psychology- Analysis of a Half-Century of Research on Women and Gender, American Psychologist, 2012; 67, 211-230.
[5] http://townhall.com/columnists/johnstossel/2014/03/12/war-on-women-n1807016
[6] Cahill, L. Why Sex Matters for Neuroscience. Nature Neuroscience Reviews, 2006; 7, 477-484.
[7] Jazin, E and Cahill, L. Sex Differences in Molecular Neuroscience: From Drosophila to Humans. Nature Neuroscience Reviews, 2010; 11: 9-17.
[8] Hines, M., Brain Gender, 2004, Oxford Univ Press.
[9] Ingalhalikar, M et a., Sex differences in the structural connectome of the human brain, PNAS (USA), 2014; 111, 823-828.
[10] Cahill, L. Fundamental sex difference in human brain architecture. PNAS (USA), 2014, 111, 577-578.
[11] Jahanshad, N et al., Sex Differences in the human brain connectome: 4-Tesla angular resolution diffusion imaging (HARDI) tractography in 234 adult twins, Biomedical Imaging: From Nano to Macro, IEEE International Symposium, 2011, 939-943.
[12] Duarte-Carvajalino, J et al., Hierarchical topological network analysis of anatomical human brain connectivity and differences related to sex and kinship, NeuroImage, 2012; 59, 3784-3804.
[13] Gong, G and Evans, A., Brain Connectivity: Gender makes a difference, The Neurowcientist, 2011, 17, 575-591.
[14] Cribbs, D et al., Extensive innate immune gene activation accompanies brain aging, increasing vulnerability to cognitive decline and neurodegeneration: a microarray study, Journal of Neuroinflammation, 2012; 9, 179.
[15] Fine, C., Is There Neurosexism in Functional Neuroimaging Investigations of Sex Differences? Neuroethics, 2012, DOI 10.1007/s12152-012-9169-1. [N. do. T.: Confira também a crítica publicada aqui no Xibolete.]
[16] Jordan-Young, R. Brain Storm: The Flaws in the Science of Sex Differences, 2010, Harvard University Press.
[17] Hyde, J, The gender similarities hypothesis. American Psychologist, 2005; 60, 581-592.
[18] Burnett, S., Sex-related differences in spatial ability: Are they trivial? American Psychologist,1986, 41, 1012-1013.
[19] Del Giudice, M., The Distance Between Mars and Venus: Measuring Global Sex Differences in Personality, PLOS ONE, 2012; 7, 1-8.
[20] Carothers, B. and Reis, H. Men and Women Are From Earth: Examining the Latent Structure of Gender. Journal of Personality and Social Psychology. 2012 Advance online publication. doi: 10.1037/a0030437
[21] Lippa, R., Sex Differences in Personality Traits and Gender-Related Occupational Preferences across 53 Nations: Testing Evolutionary and Social-Environmental Theories Arch Sex Behav (2010) 39:619-636.
[22] De Vries, G , Sex Differences in Adult and Developing Brains: Compensation, Compensation, Compensation, Endocrinology 2004, 145, 1063-1068.
[23] Joel, D Genetic-gonadal-genitals sex (3G-sex) and the misconception of brain and gender, or, why 3G-males and 3G-females have intersex brain and intersex gender. Biology of Sex Differences 2012, 3:27.
[24] http://www.haaretz.com/news/features/.premium-1.576554
[25] Wu, H. et al., Cellular Resolution Maps of X Chromosome Inactivation: Implications for Neural Development, Function, and Disease, Neuron, 2014; 81, 103-119.
[26] Nadaf, S et al., Activity map of the tammar X chromosome shows that marsupial X inactivation is incomplete and escape is stochastic, Genome Biology, 2010; 11, 1-18.
[27] Kopsida, E. et al., The role of the Y chromosone in brain function, Open Neuroendocrinol J, 2009 ; 2: 20-30. doi:10.2174/1876528900902010020.
[28] Pinker, S. The Sexual Paradox, Scribner, NY, 2008, p.44.
[29] Fine, C. et al. Plasticity, plasticity, plasticity. . . and the rigid problem of sex, Trends in Cognitive Sciences November 2013, Vol. 17, No. 11.
[30] Eliot, L., Pink Brain, Blue Brain: How Small Differences Grow Into Troublesome Gaps -- And What We Can Do About It, 2009; HMH Publishing.
[31] Udry, J. Biological Limits of Gender Construction, American Sociological Review, 2000; 65, 443-457.
[32] Pinker, S., The Blank Slate: The Modern Denial of Human Nature, 2002, Penquin group.
[33] Darwin, C. "Descent of Man and Selection in Relation to Sex", 2nd Ed, John Murray, London, 1875, Preface to the Second Edition, page vi.
[34] Schenck-Gustafsson, K et al., Handbook of Clinical Gender Medicine, Karger Press, Basel, 2012.
Para uma resposta e uma tréplica a esse artigo, clique aqui.
Em Cerebrum (The Dana Foundation), 1 de abril de 2014.
Tradução, revisão e ilustração: Eli Vieira Apoie o Xibolete doando aqui.