"Genética Neoliberal" não passa de clichês reciclados sobre o estudo do comportamento
Em 2021, a editora Ubu lançou Genética Neoliberal. O livro é uma tradução do original Neoliberal Genetics - The Myth and the Moral Tales of Evolutionary Psychology, escrito em 2006 pela antropóloga Susan McKinnon. A autora defende que a psicologia evolucionista é uma apropriação ideológica (neoliberal) da genética e do darwinismo. Mas, para aqueles que buscam uma crítica qualificada da psicologia evolucionista, a obra decepciona. Como mostrarei ao longo da resenha, a crítica de McKinnon parece se basear em caricaturas tiradas de textos sensacionalistas de revistas, não de periódicos científicos. O livro é rico em equívocos básicos sobre teoria da evolução e sua aplicação ao comportamento, muitos dos quais eu já ouvia na minha época de graduando.
O prefácio do livro é escrito por ninguém menos que Christian Dunker e está disponível em sua coluna de opinião no blog da UOL. Trata-se de um conhecido psicanalista da USP que protagonizou recentemente uma discussão sobre psicologia baseada em evidências, gerando respostas de um outro canal de divulgadores de ciência. Nesse caso, o autor assume a postura típica do psicanalista: nega a possibilidade de uma psicologia baseada em evidências quando as evidências não são tão favoráveis à psicanálise, mas em seguida afirma sua cientificidade quando as evidências são mais otimistas. Na minha visão, o julgamento de Dunker é ainda pior quando se trata de analisar a psicologia evolucionista. Embora comece citando suas credenciais em etologia obtidas na USP, sua concordância com os erros grosseiros do livro contradizem essa experiência. A seguir, apresento uma lista dos principais argumentos (e dos principais equívocos) da antropóloga Susan McKinnon contra a psicologia evolucionista que são endossados por Dunker.
Genética não é destino
No contexto de polarização política atual, chamar alguém de fascista ou comunista acaba sendo conveniente para fugir do debate. Na ausência de argumentos, pinta-se o interlocutor como um ser abjeto a quem não se deve responder. Isso não acontece apenas no palco das redes sociais, mas também nos departamentos de Humanas e Ciências Sociais. Sugestões de que a genética tem algum papel explicativo sobre o comportamento são facilmente taxadas como deterministas e reducionistas. Evidentemente, esses conceitos nunca são definidos porque, nesse contexto, a valoração negativa já basta. A lógica é a de que “não se sabe o que é, mas coisa boa não deve ser”.
Um exemplo recente de tentativa de assassinato de reputação póstumo foi o obituário de E. O. Wilson, fundador da sociobiologia, publicado pela Scientific American. A sociobiologia é uma espécie de avó da psicologia evolucionista atual, que enxerga o comportamento dos animais como formas de aumentar seu próprio sucesso reprodutivo. No artigo, Wilson é chamado de racista sem nenhum trecho evidenciando a acusação. A autora, Monica McLemore, começa dizendo que Wilson tem um legado intelectual “complicado”, o que no jargão da justiça social significa que algo alegadamente preconceituoso foi encontrado. Wilson é acusado de racismo simplesmente pela sugestão trivial de que a genética desempenha algum papel explicativo na psicologia humana e no comportamento de outros animais. De fato, a autora chega ao cúmulo de acusar de racista uma trivialidade da estatística, a curva normal ou gaussiana — que representa a distribuição de um determinado traço na população. Se isso não é um belo exemplo de viés do igualitarismo cósmico, não sei mais o que seria.
Assuntos como determinismo e reducionismo genético estão presentes em diversos trechos de Genética Neoliberal. Dunker comenta sobre a “sistemática tentação [da sociobiologia] de atribuir à genética um papel de determinação causal direta de comportamentos” (p. 8). McKinnon também comenta que considera essa abordagem uma tentativa reducionista de naturalizar categorias e hierarquias sociais (p. 32). Sem definições precisas, só me resta inferir que determinismo e reducionismo estão sendo usados como “xingamento chique”, sem qualquer compromisso com seus significados filosóficos rigorosos. Ainda não me parece compreensível por que pessoas de Humanas tendem a considerar determinista e reducionista qualquer papel parcial da genética na explicação do comportamento, sem considerar igualmente determinista e reducionista a alegação de que apenas a cultura importa.
Por trás desses xingamentos está a ideia de que genética é destino, ou seja, você será pintor se tiver o gene da arte em suas células, votará em políticos de direita se tiver o gene do conservadorismo e assim por diante. Isso simplesmente não corresponde ao conhecimento científico atual. Tanto Dunker quanto McKinnon estão certos ao enfatizar que genes são estruturas que fabricam proteínas, não homúnculos controlando um megazord. Mas existe uma sutileza que os autores não notam.
Genes iniciam cascatas de eventos que resultam em diferenças individuais. Assim, uma pessoa pode ser mais aberta a novas experiências do que outras por causa de experiências que moldaram seu caráter, mas parte do que explica essa disposição de encarar novidades é a genética. Ter mais aversão a estranhos e a mudanças vai acabar interferindo no quanto as pessoas estão dispostas a votar em candidatos pró-imigração, por exemplo. Isso é bem diferente de qualquer coisa perto de um “gene conservador”. Estamos falando de predisposições individuais que se diluem e se manifestam na cultura. Em outra sociedade, aversão a mudanças e estranhos se manifestará de formas diferentes e em outros contextos. Isso é totalmente diferente de um literal “gene do conservadorismo” (p. 13), como descrito por ele.
Problemas com metáforas
Na graduação em psicologia, tive um professor (também psicanalista) que quase toda aula falava que O Gene Egoísta era um livro absurdo. Ele achava que Richard Dawkins estava falando que genes são literalmente egoístas. Dunker e McKinnon caem na mesma cilada. Em mais de uma ocasião, eles manifestam desconforto perante a ideia de que genes fazem “cálculos”, realizam “trade-offs”, “controlam” e “selecionam” (p. 9). Não sei se o problema é falta de caridade interpretativa ou dificuldade mesmo.
Atribuímos traços humanos a genes para facilitar o entendimento sobre seu funcionamento. Fazemos isso no cotidiano sem perceber também. Dizer que genes são egoístas não é diferente de ir no mecânico se queixando de que “meu carro não quer funcionar”. Ninguém realmente pensa que carros possuem querer. Genes são chamados de egoístas porque a evolução ocorre através da seleção de genes capazes de interagir com o ambiente gerando características adaptativas (isto é, que aumentem o sucesso reprodutivo). Vendo o processo pelo ponto de vista dos genes, é como se eles fossem computadores maximizando as chances de gerarem cópias de si mesmos.
Esferas de análise,
o feijão com arroz da etologia
Interpretações literais como essas levam a outro erro, o de achar que pessoas são zumbis. Por exemplo, eu poderia ser um zumbi controlado pelos meus genes. Estou escrevendo esse texto porque meus genes me levaram a isso. Pessoas que doam dinheiro na verdade são egoístas, porque são seus genes egoístas que querem doar. É o que Dunker parece sugerir ao leitor em seu prefácio: “[a] nova psicologia da evolução depende de um triplo paradoxo: cria escolhas que não são escolhas, postula indivíduos que não são indivíduos e imagina efeitos culturais que são independentes da cultura.” (p. 9).
Para desfazer essa confusão é preciso saber o que são esferas de análise.
Essa história é tão básica que começa com Aristóteles falando sobre cadeiras. Uma cadeira tem uma causa material, que pode ser a madeira (aliás, material vem de matéria, cuja raiz etimológica é a mesma de madeira). A cadeira foi esculpida por alguém, o que é a sua causa eficiente. A cadeira também tem uma certa aparência, como ter quatro pernas, o que é sua causa formal. Usamos cadeiras para sentar, o que configura a sua causa final.
Posteriormente, essas causas aristotélicas foram aplicadas na etologia para explicar as causas dos comportamentos dos animais. Comportamentos são causados por mecanismos biológicos (genética, cérebro, design psicológico, ambiente, etc) que se desenvolvem ao longo da ontogênese, ou seja, desde a concepção. O desenvolvimento desses mecanismos se dá a partir da interação aqui-e-agora com o ambiente, mas depende de um programa ou alicerce genético para ocorrer, este herdado por uma história filogenética prévia. Esses genes, por sua vez, são herdados porque geram fenótipos que aumentam as cópias deles mesmos, ou seja, por causa de sua função adaptativa.
Isso significa que um mesmo comportamento pode ter várias causas, dependendo da esfera de análise analisada. Sabe quando dizem que não existe altruísmo de verdade porque no fundo as pessoas ajudam umas às outras para benefício próprio? Isso não é inteiramente verdade. Ser altruísta ativa circuitos de prazer, o que aumenta as chances de repetir o comportamento. Ser altruísta é uma capacidade de espécies sociais moldada ao longo da evolução. Mas nada disso implica que uma dada pessoa sendo altruísta está mentindo ou sendo auto-interessada. O que Dunker e McKinnon não entendem é que podemos, metaforicamente, dizer que genes são egoístas se quisermos identificar os benefícios adaptativos desse altruísmo. Tanto é assim que "organismos altruístas" podem conter "genes egoístas".
Outro exemplo é a tentativa de McKinnon (apoiada por Dunker) de refutar o valor adaptativo do altruísmo. Uma possível explicação para o surgimento do altruísmo em várias espécies é a vantagem de ajudar na sobrevivência de indivíduos que compartilham genes. Do ponto de vista do gene, ajudar meu irmão ou meu primo é vantajoso porque, afinal, compartilhamos alguns genes. Ajudar eles a passar seus genes adiante é ajudar os meus genes a se proliferarem também. McKinnon não entende que para isso ser verdade ninguém precisa ter conhecimento sobre genética. É claro que indivíduos não estão calculando quantos genes são compartilhados com qual parente e quem vale mais a pena ajudar.
De fato, a antropóloga chega a afirmar que, para isso ser verdade, seria preciso que culturas tradicionais tivessem uma teoria genética sobre parentesco. Esse contra-argumento ignora totalmente que famílias compartilham características físicas visíveis a olho nu. Se dependêssemos exclusivamente da genética para compreender esse tipo de linhagem, não poderiam haver dinastias baseadas em laços de parentesco antes do século XIX.
Diversidade refuta a evolução?
Outro equívoco comum é achar que genética tem a ver com comportamentos involuntários, fixos e invariáveis. Se isso fosse verdade, psicólogos evolucionistas teriam dificuldade de explicar variações contextuais e culturais, o que não é o caso. Na página 14, Dunker diz assim: “Os psicólogos evolucionistas não são capazes de explicar por que indivíduos se desviam na expressão de uma norma cultural específica nem por que há tantas respostas possíveis para o mesmo ato — ou seja, a sexualidade extraconjugal da esposa.” Essa é uma variação de um clichê, o de que a biologia explica semelhanças entre culturas, mas não suas diferenças.
Para começar, diferenças individuais são totalmente esperadas. O próprio Charles Darwin percebeu que não existe indivíduo igual a outro. Mas também é evidente que indivíduos variam dentro de um campo de possibilidades biológicas, e não de maneira ilimitada.
Variação individual não é apenas ruído, é adaptação. Para espécies que colonizam uma diversidade de contextos ecológicos, é muito adaptativo ter alta capacidade de aprendizagem e também diferenças de temperamento, como a busca por estímulos novos. Por exemplo, em ambientes com alta prevalência de patógenos, onde é mais fácil contrair doenças, as pessoas ficam mais introvertidas, e quem já tem essa predisposição acaba tendo mais sucesso em evitar desconhecidos que podem estar contaminados (lembre-se de que os germes dos europeus mataram mais indígenas do continente americano do que guerras).
Essa diversidade de tendências psicológicas pode acabar transbordando para a cultura. Estratégias comportamentais adaptativas acabam sendo justificadas por tradições culturais. A multiplicidade de casamentos é um bom exemplo disso: existem culturas políginas, poliândricas e monogâmicas. Na poliginia, homens formam haréns de mulheres. Sociedades que permitem a poliginia tendem a ter abundância de recursos ao ponto de ser possível acumulá-los. Quanto mais recursos, maior a possibilidade de comprar dotes e sustentar esposas. Culturas poliândricas, ao contrário, permitem que mulheres façam haréns. Mas, nesse caso, são os maridos (geralmente parentes) que fornecem os recursos. Sociedades poliândricas são pobres, então é muito difícil acumular esses recursos. Desse modo, o somatório dos recursos dos maridos em sociedades poliândricas equivale aos recursos de um marido numa sociedade polígina ou monogâmica.
Aliás, é curioso que a maior parte das sociedades humanas sejam políginas, mas a maior parte dos relacionamentos sejam monogâmicos. A constância da monogamia deixou marcas biológicas. O dimorfismo sexual sutil dos humanos é típico de sociedades monogâmicas. Além disso, o tamanho diminuto dos testículos e a baixa quantidade de esperma produzido não aguentaria o tranco de um sistema de acasalamento onde ninguém é de ninguém, como ocorre com os bonobos.
A busca por status social também é um bom exemplo da interação entre biologia e cultura. Acadêmicos de esquerda comumente alegam que a busca por status social foi moldada recentemente pela ganância das sociedades capitalistas. Por isso que, para esses estudiosos, é tão fácil adotar a visão marxista de que poderia haver uma sociedade com tudo dividido igualitariamente, onde todos trabalhassem para o bem coletivo, não por auto-interesse.
É possível que a busca por acumular recursos seja mais intensa em sociedades pós-agrícolas — afinal, foi a agricultura que permitiu a produção de recursos suficientes para que o acúmulo fosse possível. Disso não segue que sociedades nômades de caçadores-coletores não buscassem por status. Pelo contrário, há indícios de que status e prestígio são moedas de troca muito antigas, oferecidas a indivíduos que contribuem de alguma forma para sua sociedade. Por exemplo, um caçador que consegue trazer proteína suficiente para sua tribo é recompensado com prestígio, o que aumenta a quantidade de favores oferecidos pelos homens e atrai mais parceiras sexuais. Em sociedades industrializadas acontece a mesma coisa, mas as pessoas exercem outras atividades em troca de prestígio, recursos e parceiros sexuais. Em um lugar, ter status significa ostentar carros e relógios; em outro, passar no mais concorrido vestibular; ainda em outro, provar ser forte o suficiente para proteger a vila de um grande animal selvagem. Os meios são diferentes, mas os fins são basicamente os mesmos.
Em síntese, é possível argumentar que o comportamento humano é resultado de inputs ambientais processados por um aparato cognitivo moldado ao longo de milhões de anos de evolução. Portanto, alegar que a psicologia evolucionista não considera o ambiente e a cultura é simplesmente falso.
Na dúvida, apele para o
neoliberalismo malvadão
Pelo título do livro, percebe-se que o principal problema não é científico, mas ideológico. A antropóloga vê a psicologia evolucionista como parte de um projeto neoliberal de sociedade -- mas em momento nenhum define o que é neoliberalismo e qual é exatamente seu papel na psicologia. Mesmo diante dessa imprecisão, a mensagem principal fica clara, isto é, a psicologia evolucionista serviria a propósitos conservadores. O problema é que a maioria dos psicólogos se posicionam politicamente à esquerda, incluindo os psicólogos evolucionistas. O próprio Steven Pinker, tão bombardeado pelos progressistas, assume seu posicionamento esquerdista (que flerta cada vez mais com o progressismo, sem se basear na mente humana como tabula rasa).
Entretanto, Dunker e McKinnon estão certos sobre uma coisa. A psicologia evolucionista e outras áreas que fazem uso do pensamento darwinista têm usado cada vez mais um vocabulário importado da economia. Mas qual o grande problema?
Não é como se a utilização de metáforas para compreender fenômenos fosse algo novo na história da ciência. Como Matthew Cobb mostra em A Ideia do Cérebro (tradução livre), ao longo da história, o cérebro já foi comparado a uma esponja, a uma máquina a vapor e, hoje, a um computador digital (daí falarmos do cérebro como "processador de informação"). Dito isto, talvez o problema com as metáforas econômicas seja seu suposto cunho ideológico.
Não há, contudo, nada de estritamente neoliberal em falar de trocas, trade-offs, custo e benefício. Esses são elementos considerados em qualquer tipo de troca feita de comum acordo entre indivíduos. Isso parece refletir o velho hábito da esquerda de tentar controlar trocas, interromper a dinâmica natural entre agentes e então chamar isso de economia. Ironicamente, uma parte considerável da psicologia acadêmica no Brasil e na América Latina usa um vocabulário marxista particularmente datado (como “luta”, “imperialismo”, etc.). Para citar um exemplo mais concreto, a psicologia sócio-histórica utiliza um vocabulário que parece saído direto da revolução cubana. Arrisco dizer que McKinnon ou Dunker não considerariam isso um problema.
Sendo mais pragmático, o vocabulário “neoliberal” parece útil quando se trata de explicar a dinâmica entre indivíduos. Hoje fala-se, por exemplo, em valor no mercado de acasalamento. Esse termo traduz o poder de barganha que homens e mulheres têm nos relacionamentos de acordo com seus atributos (beleza, status social, etc.), a sua procura e a sua escassez no "mercado".
A lógica de mercado também é útil para explicar as consequências da proporção entre homens e mulheres férteis na população. Segundo uma lógica demográfica mais intuitiva, o sexo em maior número dita as regras. Por exemplo, se homens estiverem em maior número, eles exercerão mais poder, obrigando as mulheres a se conformarem aos seus padrões de preferência por sexo sem compromisso. Mas não é isso que as pesquisas mostram. Na verdade, o sexo em menor quantidade é quem dita as regras. Assim, quanto menos mulheres, mais os homens se conformam aos padrões femininos de relacionamentos mais compromissados. Isso é basicamente o que acontece numa troca comercial. Se só eu tenho um produto muito procurado, eu determino o preço por ele.
Conclusão
Em síntese, Genética Neoliberal é só uma reunião dos clichês mais populares contra a psicologia evolucionista. É realmente impressionante ver que um livro assim tenha sido traduzido mais de 10 anos depois da publicação original, como se seus argumentos refletissem o atual estado da arte da disciplina — de fato, as críticas não estavam atualizadas nem na época da publicação original. Se o objetivo é traduzir uma crítica qualificada e atualizada, materiais de alta qualidade não faltam, tais como The Weirdest People In The World, do antropólogo Joseph Henrich, e Beyond the Brain: How Body and Environment Shape Animal and Human Minds, da totalmente interdisciplinar Louise Barrett. Esses trabalhos mais qualificados acabam sendo pouco conhecidos no Brasil porque, claramente, a ênfase está em trabalhos que conversem com a elite acadêmica mais progressista. Críticas técnicas e construtivas são menos conhecidas do que críticas baseadas em identitarismo ou em algum tipo de antiliberalismo; afinal, "tudo é política".
Esse também é o caso de Inferior é o Caralh*, lançado pela Darkside, com um objetivo mais ideológico do que científico. Embora esses livros contenham críticas aos pressupostos teóricos, aos métodos e às conclusões da psicologia evolucionista, fica óbvio que a intenção última é ideológica. Anseia-se por minar um suposto projeto de poder neoliberal dos psicólogos evolucionistas, minar os interesses do mercado, etc. É evidente que cientistas têm interesses e vieses, mas é impossível negar o ar conspiratório de alegações baseadas em agendas, projetos secretos de poder e afins. Isso não é essencialmente diferente dos think-tanks de direita desconfiando conspiratoriamente da indústria farmacêutica e do governo — ainda que obviamente tais instituições também tenham interesses em jogo.
Outra parte do pacote de manufatura da dúvida é a acusação de "parasitagem ideológica" e fake news científica", apresentada no prefácio: "o livro chega em boa hora, quando discutimos a importância da ciência, mas também das 'parasitagens ideológicas' das ciências, incluindo aí o que venho chamando de fake news científicas", escreve ele. Considero que existem tentativas reais de minar a credibilidade de evidências sólidas que apontam para determinados fenômenos, o que convencionou-se chamar de "negacionismo" desde que começaram a negar as evidências esmagadoras do holocausto nazista. Desde então o termo vem sendo usado para se referir a outras tentativas de manufatura de dúvida em campos como o aquecimento global, as vacinas, "criacionismo versus evolução", etc. A popularização do termo o transformou em xingamento, assim como "determinista" e "reducionista"; um adjetivo pejorativo para minar a credibilidade do rival intelectual sem se preocupar em demonstrar adequadamente os seus erros.
É isso que Dunker tenta fazer ao mencionar a "pandemia de fake news" e o uso de ferramentas científicas para propósitos ideológicos. O problema é que, do meu ponto de vista, ele mesmo acaba fazendo exatamente isso ao endossar os espantalhos contidos em Genética Neoliberal.